A tradição melodramática está viva e recomenda-se: eis o saldo mais evidente do novo e magnífico filme assinado por Alexander Payne — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Janeiro), com o título 'Regras para enfrentar a verdade'.
Muitas vezes, os melodramas caminham em direcção a uma ruptura: um elemento crítico, eventualmente catastrófico, manifesta-se, pondo à prova o espaço familiar e as suas relações internas. A narrativa evolui como uma demonstração mais ou menos nostálgica: até que ponto os protagonistas saberão repor a ordem que conhecemos no início?
O argumento de Os Descendentes experimenta uma variação que, não sendo original (lembremos a herança admirável dos filmes de Joseph L. Mankiewicz, em particular A Condessa Descalça, de 1954), é sempre surpreendente: quando o filme arranca, algo de trágico já está consumado. Logo na introdução, sabemos que a existência de Matt King, um advogado sediado no Hawai, está irremediavelmente marcada pela situação da mulher: Elizabeth teve um acidente num barco de recreio e está em coma. Perdido nas lides familiares e, em particular, na relação com as duas filhas, Matt formula perante o corpo inerte de Elizabeth uma súplica angustiada: que ela acorde para resolverem os problemas acumulados por uma relação cada vez mais distante.
Este é um cinema que vive, em tudo e por tudo, da dádiva dos actores. Veja-se a composição central de George Clooney e o modo como ele próprio sabe distanciar-se de qualquer cliché que lhe queiram colar. E registe-se a presença visceral de Shailene Woodley (a filha mais velha), por certo uma grande actriz em formação.
Alexander Payne, cineasta de filmes como Election (1999) e Sideways (2004), filma a viagem emocional de Matt como um doloroso reencontro com tudo aquilo que ele quis esquecer ou ocultar. É esse, afinal, o tema fulcral destes universos melodramáticos: a existência (ou não) de regras para enfrentar a verdade dos factos e das relações, a meio caminho entre a intimidade e as trocas sociais.