FOTO Miguel Manso / Público |
* Curiosa e interessante polémica desencadeada pela manchete de hoje do jornal Público: "Sporting forrou acesso a balneário com imagens que exaltam violência". Curiosa porque reflecte o poder efectivo das imagens. Interessante porque, pelos discursos que suscita, por certo também por aqueles que omite, serve de sintoma dos modos dominantes de percepção social das imagens — de todas as imagens.
* Não estamos, decididamente, no universo da cinefilia. Nesse universo, hoje em dia minoritário, mas resistente, a imagem não se mede pelos efeitos, "positivos" ou "maléficos", que possa envolver. No fundo, o cinéfilo é aquele que sabe que a imagem desafia qualquer forma de integração através das palavras — ditas ou escritas — e, por isso mesmo, está sempre em défice em relação ao mundo, do mesmo modo que nós estamos em défice em relação à imagem. Aliás, que não há aqui nenhuma réstea de cinefilia, nem mesmo da mais basicamente mimética, pode confirmar-se pelo facto de as polémicas sobre "aquilo" que as imagens de Alvalade representam não invocarem as semelhanças entre a figura mascarada e o Hannibal Lecter de O Silêncio dos Inocentes (1991), interpretado por Anthony Hopkins.
* É um facto que as discussões (?) nos espaços de intervenção de sites ou blogs são muito pouco estimulantes, contaminadas que estão por discursos de banal insulto ou difamação. Podemos até admitir que, mesmo antes de qualquer debate sobre a formulação jornalística da notícia, seja discutível o seu timing, a pouco mais de 24 horas de um Sporting-Porto. Como, por certo, escusado será dizê-lo, é discutível a opção que levou a usar aquelas fotografias para "decorar" aquele local. Ainda assim, confunde-me sempre que sejam muito poucos os que esperam (ou exigem) alguma intervenção dos responsáveis pelos clubes. Seria interessante, por exemplo, perguntar porque é que os presidentes dos clubes não tentam coordenar entre si um discurso firme e inequívoco, não contra os adeptos dos outros clubes, mas sim demarcando-se, cada um deles, de alguns comportamentos dos adeptos do seu próprio clube? Seria, pelo menos, um genuíno discurso de pacificação.
* Seja como for, creio que vale a pena tentar deslocar um pouco o espaço de formulação do problema. Vale a pena, sobretudo, demarcarmo-nos do dispositivo de pensamento com que surge enquadrada a própria existência das imagens. É um dispositivo determinista que pressupõe uma ideia clínica de limpeza das imagens e passividade do interlocutor. Se, como se diz, as imagens "exaltam" alguma coisa (a violência, neste caso), isso arrasta duas considerações que exprimem, no limite, uma ideologia teleológica, talvez também teológica, das imagens — e para as imagens. É uma ideologia que implica sempre, nem que seja como subtexto, uma vontade profilática: "cuidado que as imagens são perigosas". Mais do que isso: "cuidado que do outro lado estão indivíduos permeáveis que, na mais pura inércia, se confrontam com os perigos que as imagens canalizam". Neste discurso, somos todos vazios ou incapazes. Isto para já não falarmos da interpretação meramente sintomática das imagens — será que uma imagem de Adolf Hitler a acarinhar uma criança é uma imagem que exalta a inocência, a concórdia e a pureza de sentimentos?
* Vivemos numa sociedade dominada por uma concepção paternalista dos cidadãos e, em particular, por uma visão determinista da relação desses cidadãos com as imagens. Não será por acaso que, no continuado debate sobre as regras ou valores do "serviço público" de televisão, as intervenções mais elaboradas (e, sem dúvida, mais empenhadas) provêm de membros da classe política que, ciclicamente, vêm protestar contra as imagens de sexo & violência (que nos podem perturbar ou corromper). Importaria questionar esses cruzados da virgindade de todos os olhares e da idealização de todas as formas de figuração: porque é que um apresentador de um qualquer telejornal a ler uma notícia não pode ser pensado também como fenómeno de linguagem? E, já agora, o que é que o seu discurso exalta? Acontece que todos aqueles discursos profiláticos ignoram que somos seres de linguagem. Ou como sugere Godard num dos seus filmes: os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem.
* Será que os adolescentes risonhos, muito limpos e festivos, de Morangos com Açúcar são o protótipo das "boas" imagens? A sua limpeza e a sua permanente pose de celebração resumem a excelência de uma pedagogia social a que todos nos devemos submeter? Será assim tão interessante (ou tão neutro) o que eles exaltam?
* Não será que podemos alargar o quadro de formulação teórica das nossas perguntas, considerando que imagens cândidas (???) como esta podem envolver uma visão determinista, normativa, redutora e estupidificante, não apenas da juventude (ah! a "juventude", esse mito...), mas de todas as relações humanas? Ou estamos condenados a ter de escolher entre rostos sorridentes e rostos mascarados? Não temos mais alternativas e, sobretudo, outras ideias para olhar o mundo à nossa volta?
* Que ideias? Podemos começar pelas ideias jornalísticas, morais e filosóficas. Sem esquecer as ideias futebolísticas.
* Não será que podemos alargar o quadro de formulação teórica das nossas perguntas, considerando que imagens cândidas (???) como esta podem envolver uma visão determinista, normativa, redutora e estupidificante, não apenas da juventude (ah! a "juventude", esse mito...), mas de todas as relações humanas? Ou estamos condenados a ter de escolher entre rostos sorridentes e rostos mascarados? Não temos mais alternativas e, sobretudo, outras ideias para olhar o mundo à nossa volta?
* Que ideias? Podemos começar pelas ideias jornalísticas, morais e filosóficas. Sem esquecer as ideias futebolísticas.