quarta-feira, dezembro 14, 2011
'Papuça e Dentuça' (1981)
por Marta Fernandes
Este mês pedimos a uma série de amigos que nos falassem do “seu” filme da Disney. Hoje recordamos Papuça e Dentuça, longa-metragem de 1981 que aqui é evocada por Marta Fernandes, da Midas Filmes. Um muito obrigado à Marta pela colaboração.
Quando me convidaram para escrever este texto, a minha primeira reacção foi falharam o alvo. Eu e a Disney nunca fomos particularmente amigos, nunca um filme me marcou ao ponto de nunca o esquecer. Confesso até que há um lado na Disney que me irrita com a sua propagação de princesas não brancas mas multirraciais numa tentativa, que pode ser olhada como redutora, de promoção da inter-racialidade (Pocahontas, Jasmine, Mulan, Maddy).
Nunca sonhei ser uma princesa da Disney, mas a psicanálise também deve explicar isso com o facto de ser a única rapariga de uma família cheia de rapazes e ter preferido andar a correr com um bando de rufias.
Mas, na verdade, há um filme da Disney que faz parte das minhas memórias cinematográficas: Papuça e Dentuça, a história da amizade improvável entre um cachorro e uma raposa, um elogio ao amor possível entre seres tão diferentes.
Vi o Papuça e Dentuça aos quatro ou cinco anos numa projecção ao ar livre num parque de campismo. Foram os verões das grandes aventuras, em que me perdi na praia, em que fugimos em pijama do parque que se incendiou durante a noite, em que alguém roubou o biquíni da minha tia e eu me divertia armada em Sherlock Holmes para o descobrir. Há uma fotografia minha a preto e branco, na praia em cima de um burro, que lembra todos esses momentos. Foi num desses verões que me apaixonei.
O Papuça e Dentuça é o meu Cinema Paraíso. Não foi a primeira vez que vi um filme, mas foi a primeira vez que vi uma máquina de projecção. A primeira vez que vi um filme a ser projectado. E acho que devo ter passado mais tempo a olhar para a máquina que para o ecrã, por mais comovente que fosse a história dos dois amigos que brincavam e rebolavam pelo campo a jogar às escondidas. Acho que foi nesse momento que me apaixonei pelo cinema.
Depois disso, passei parte da infância a brincar com uma incrível pequena máquina de projecção azul, de manipulo cor-de-laranja, que os meus pais me ofereceram. Fechava-me no quarto, fechava as janelas e no escuro projectava na única parede branca filmes do Flash Gordon e do Popeye, em que eu era projeccionista, orquestra, voz off, bilheteira, quando convidava amigos ou primos. Era o meu cinema ambulante.
Foi um amor de infância, uma paixão tão improvável como a do cão e da raposa. Se aos cinco anos me dissessem que o cinema hoje faria parte da minha vida, nunca acreditaria. Mas afinal, como nas histórias da Disney, há finais felizes. E façamos justiça, portanto, ao Papuça e Dentuça.
Nunca revi o filme. E, quando agora para escrever sobre ele perguntei aos meus pais onde o tinha visto, se fora em Santa Cruz ou na Praia Verde, eles não se lembravam de eu alguma vez ter visto o Papuça e Dentuça no cinema ao ar livre do parque de campismo. Será que esse momento é como aquele momento em que a protagonista de um filme do Erice fala de uma memória tão, tão, tão intensa que na realidade foi inventada?