A violência é uma espécie de palavra mágica da televisão: a sua simples enunciação suscita os mais diversos discursos, entre a mais salutar pedagogia e o mais obsceno populismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 de Dezembro), com o título 'Dar a ver a violência'.
Por que é que o facto de algumas dezenas de espectadores destruírem outras tantas cadeiras num estádio de futebol é, nas notícias televisivas, um assunto prioritário? Por que é que a acção desses espectadores é mais importante do que, por exemplo, a estreia do mais recente filme de David Cronenberg (Um Método Perigoso), sobre as origens da psicanálise?
Será que a questão não se coloca? Provavelmente não. Mas importa perguntar quem não a coloca. E quem não a coloca são as próprias televisões (o exemplo de Cronenberg é apenas um entre os muitos que são ignorados). Que é como quem diz: as notícias não são uma emanação “natural” da realidade. Bem pelo contrário: todas as notícias nascem de uma escolha. Dar evidência aos desacatos num campo de futebol é uma escolha. Silenciar a estreia de um filme de um dos maiores artistas contemporâneos é uma escolha.
Recentemente, tivemos um exemplo admirável do sentido de uma escolha e das responsabilidades que ela envolve. Foi numa edição do programa de Oprah Winfrey (SIC Mulher), dedicado ao tema “raça”. Na retrospectiva dos 25 anos do seu show, Oprah evocou o lendário discurso de Martin Luther King “I have a dream” (proferido a 28 de Agosto de 1963) e, sobretudo, o modo como no seu trabalho abordou as relações entre brancos e negros. Foram momentos tanto mais didácticos, e profundamente comoventes, quanto pelo seu programa têm passado testemunhos admiráveis sobre o racismo nos EUA e também as muitas formas de resistência a todas as suas violentas expressões.
É preciso falar de violência. Sem dúvida. Mas não através dessa lógica gratuita que mostra uma bancada chamuscada de um estádio para nos deixar, indefesos, com a noção determinista de que já passámos para além do apocalipse social.
Oprah fala da violência racista, violência das palavras e violência dos actos, nunca esquecendo que se trata de lidar com uma teia imensa de factores que não podem ser reduzidos a maniqueísmos moralistas. Nada a ver com o gratuito informativo que monta um aparato sensacionalista cada vez que há imagens violentas para passar. Aliás, as imagens nunca são apenas aquilo que mostram. São também o modo como são mostradas.