segunda-feira, dezembro 19, 2011

"Agora mete-se o Natal..."

LEONARDO DA VINCI
Estudo de um feto (c. 1510), in Wikipedia
A frase vem do humor televisivo. E resume bem o estado de inércia com que são vividos muitos eventos natalícios (inclusive na própria televisão) — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Dezembro).

Foi no abençoado Estado de Graça (RTP1) que encontrámos a definição exemplar do espírito da época: não estamos a comemorar o Natal, a transcendência da sua herança ou a energia futura que nele pressentimos. Nada disso. Vivemos em plena suspensão do presente, um pouco como quando vemos os dias a passar e tentamos saber se o empreiteiro vai arrancar com as obras lá em casa ou o mecânico se decide a arranjar a embraiagem do nosso automóvel. Num misto de demissão e irresponsabilidade, o mote é: “Agora mete-se o Natal...” Que é como quem diz: a quadra aconselha a que não se façam planos demasiado ambiciosos porque as festas vão instalar a sua eufórica inércia.
Curiosa e suave inércia. Por um lado, massacram-nos os corpos e a alma com relatos apocalípticos da crise, apelando, no mínimo, ao nosso ritualizado suicídio. Temo mesmo pela minha saúde mental cada vez que vejo um enviado especial às instâncias da União Europeia, dando largas à sua felicidade de carrasco mediático, sugerindo-nos que amanhã talvez não acordemos vivos... Se calhar, tem razão. Expliquem-me então porque é que, por outro lado (aliás, do mesmo lado, logo a seguir), somos interrompidos na nossa angústia por anúncios de delirante euforia consumista, este ano com especialíssimo destaque para os telemóveis, os perfumes e as máquinas de café.
Mais ainda: há sempre em tudo isto muitas crianças que riem muito, gritam muito e, abençoada inocência, conseguem resistir a todas as iluminadas perguntas metafísicas com que são bombardeadas, incluindo a muito radical: “Gostaste???”. Isto para não falar das tragédias futebolísticas, com deambulações intermináveis pelos milímetros dos fora de jogo e a consagrada “justiça” dos resultados (porque é que ninguém refere que esta banalização populista da “lei” não pode deixar de ter consequências culturais na percepção global da própria noção de justiça?).
E porque, para muito boa gente, a “crítica” pode sempre servir de bombo da festa, pressinto que alguém exigirá, aqui, alguma perspectiva, teórica e fundamentada, sobre a noção de “serviço público”. Como?... Desculpem lá, mas agora mete-se o Natal...