terça-feira, dezembro 20, 2011

O manifestante da revista "Time"

1. Quem é o manifestante ("The Protester") eleito figura do ano pela revista Time?

2. Uma síntese, claro. O artigo de Kurt Andersen que sustenta a escolha da Time explica isso mesmo: de Tunis a Nova Iorque, passando pelo Cairo, Madrid, Atenas ou Moscovo, o manifestante emergiu como figura central de diversos contextos e, sobretudo, como actor principal de processos vários de reivindicação de mais liberdade, mais dignidade ou mais justiça [em baixo: video da Time, com Andersen a enquadrar o seu trabalho].

3. A pergunta (inevitável) é esta: que faz com que a pluralidade dos contextos onde se verificaram acções de protesto se possa condensar numa personagem "universal"? Ou ainda: quando passamos dos particularismos das manifestações (plural) para o suposto universalismo do manifestante (singular), que história recalcamos? Ou que história estamos a escrever?

4. Não simplifiquemos. Acima de tudo, não banalizemos a riqueza de informações e a complexidade argumentativa deste tradicional número de balanço da Time. Em todo o caso, importa não dar por adquirido aquilo que é, de facto, uma construção interpretativa — e, no limite, ideológica — dos nossos tempos. Exactamente como a noção (que se tornou) corrente de rede social. De facto, discutir os fundamentos e o funcionamento do Facebook, e outros dispositivos com lógicas similares, não é o mesmo que favorecer um debate estéril, banalmente televisivo, sobre o "bem" e o "mal", os "prós" e os "contras" de tais dispositivos. É, isso sim, resistir à sua consagração como coisa natural — no limite, trata-se de questionar a crença pueril segundo a qual os gigantescos e mais ou menos virtuais labirintos informativos em que vivemos seriam a emanação de uma "natureza" imaculada, unívoca e inquestionável.

5. Aquilo que o dossier da Time não integra é, justamente, esse recuo mínimo que nos permita perceber que o somatório do "manifestante egípcio" + o "manifestante espanhol" + o "manifestante russo" + ... não gera UM "manifestante". Em boa verdade, esse somatório não gera uma rede (social) de manifestantes, como o facto de estarmos ligados por infinitas imagens de um polegar levantado, associado à palavra "like", não é garantia de nenhuma cumplicidade consistente e/ou duradoura.

6. Repare-se: nada disso resulta da negação de um facto bem real que os laços virtuais geraram — sabemos que muitas das manifestações em causa (e, mais concretamente, muitas formas de resistência a regimes ditatoriais) passaram, e continuarão a passar, por formas de partilha de informação que encontram na Net uma base vital de expressão e sustentação. O que importa não esquecer, também, é que o mero somatório de "manifestantes" não gera, por si só, um novo conceito, seja ele político ou ético, a que possamos dar o nome de "manifestante".

7. As imagens não são veículos neutros da nossa vontade, muitos menos dos nossos desejos, e raras vezes conseguem esgotar-se numa informação linear e definitiva. Que é como quem diz: ao contrário do que todos os dias nos dizem os telejornais, as imagens não vivem como objectos à espera que os caucionemos com as nossas "mensagens". A imagem da capa da Time, criada por Shepard Fairey (autor do cartaz "Hope", de Barack Obama), é disso um luminoso exemplo, sobretudo porque há nela uma humilde aceitação da sua arbitrariedade. De onde vem aquele lenço? E que gorro é aquele? Podemos ler nos olhos uma revolta masculina ou uma obstinação feminina? Que sexo tem o manifestante? Ou será que o seu sexo se perdeu no simbolismo com que sobrecarregamos a imagem?


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"As árvores são alfabetos, diziam os Gregos. De todas as árvores-letras, a palmeira é a mais bela. Da literatura, abundante e distinta como o leque dos seus ramos, ela possui o efeito maior: a base."

in Roland Barthes por Roland Barthes
(Edições 70, 1976)