Frederick Wiseman, por certo um dos maiores cineastas contemporâneos (documentarista ou não), filma agora os bastidores do "Crazy Horse", em Paris — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 de Outubro), com o título 'A nudez nunca existiu'.
O jornalismo que explora os “escândalos” da nudez feminina é um jornalismo miseravelmente machista. Entenda-se: nele se reduz a dimensão humana a uma miséria existencial. Mais do que isso: os seus produtos afectam toda a classe jornalística, todos os dias contribuindo para degradar o seu prestígio (e também para minimizar as qualidades da maioria dos seus representantes).
Face à estreia de Crazy Horse, não pude deixar de me perguntar de onde vem a indiferença desse jornalismo perante o notável filme de Frederick Wiseman. Afinal, tal jornalismo está sempre disponível para anunciar o apocalipse apenas porque, algures, em alguma imagem, uma actriz surge a expor um mamilo... (e se o leitor julga que estou a caricaturar, peço licença para lhe dizer que tem andado distraído). Acontece que, ao filmar os bastidores da célebre casa de espectáculos de Paris, Wiseman mostra, serenamente, o que lá se vive: os números musicais com bailarinas nuas, os ensaios das mesmas, etc.
Em boa verdade, o alheamento do jornalismo dos “escândalos” decorre da mais básica coerência: Wiseman pertence a outra classe, não é um explorador grosseiro das suas personagens, mas sim um aristocrata da dignidade humana. Já filmou o funcionamento dos mais variados universos “fechados”: um liceu, um quartel, um hospital, até mesmo uma companhia de dança (no anterior A Dança, de 2009, sobre o Ballet da Ópera de Paris, também lançado nas salas portuguesas). O “Crazy Horse” é mais um espaço que o interessa pela especificidade da sua organização interna.
Como sempre acontece nos seus filmes, também Crazy Horse é, em grande parte, um objecto de palavras. As coreografias, o guarda-roupa, a encenação dos corpos ou a composição das luzes são, naturalmente, matérias em destaque, mas só adquirem verdadeira espessura através dos diálogos. Daí o lugar fundamental que ocupam as cenas em que assistimos às reuniões de preparação (até mesmo a um casting) no interior do “Crazy Horse”. De acordo com uma lógica que não é estranha ao interesse de Wiseman pela psicanálise (ele próprio já o reconheceu), é pelo labor infinito das palavras que o mundo se organiza e produz significações.
Sem dúvida por isso, o resultado prático de Crazy Horse nada tem a ver com qualquer cliché, seja ele descritivo ou moralista. Deparamos, aqui, com a demonstração prática de uma interpretação avançada por Roland Barthes, em 1957, nas suas clássicas Mitologias (Edições 70): “O striptease – pelo menos o striptease parisiense – baseia-se numa contradição: dessexualizar a mulher no próprio momento em que esta é despida.” Daí que Barthes o defina como um “espectáculo do medo”, ou antes, do “faz-me medo”. Wiseman filma essa contradição na banalidade do seu dia a dia. Grande cinema, a provar que nenhuma imagem está nua: é apenas uma etapa de um processo de compreensão dos olhares.