Podiam ser as coisas mais banais do mundo. Podiam ser até mesmo as histórias da vizinha do lado... Mas nas mãos dos irmãos
Dardenne os pequenos factos do quotidiano reinventam-se segundo todo um programa que deles faz grandes momentos de cinema. Pela sua obra passam já sobejos exemplos desta forma muito pessoal de entender uma noção de “realismo”. E
Le Gamin au Vélo, que em breve estreia entre nós e que teve anteestreia no Lisbon & Estoril Film Festival, é mais um notável exemplo de exploração dessa sua linguagem.
A história leva-nos a uma pequena (bom, imaginamo-la pequena) cidade, onde um rapaz tenta furar todos os esquemas possíveis de vigilância do internato onde foi colocado para tentar reencontrar um pai que, pelos vistos, se mudou sem sequer lhe dizer um adeus (muito menos para onde ia). Numa dessas fugas entra por um consultório dentro, derrubando uma paciente que, mais que todos os outros, o tenta entender. Compra-lhe de volta a sua bicicleta (que o pai vendera) e começa a levá-lo para casa aos fins de semana. Cyril não é fácil, e o seu comportamento deixa transparecer a revolta natural em quem não compreende porque deixou de interessar a quem deveria ser o primeiro a por si mostrar interesse... O filme acompanha então episódios de um quotidiano que reflecte a inquietude de Cyril e a missão que Samantha (interpretada por Cécile France) parece desenhar para si mesma. Sem moralismos nem soluções de livro de auto-ajuda, observa como as relações são tudo menos coisa que se lança numa agenda de intenções, o inesperado que acontece ao virar da esquina colocando novos elementos em cena.
Sem estragar a descoberta dos caminhos que a narrativa toma a quem se quiser sentar numa sala de cinema sem levar de casa a resposta ao “e depois?” sublinhe-se apenas a constatação de uma luminosidade que corre no tutano do filme. Nem sempre evidente mas que tenta acreditar, como o faz a personagem de Cécile France, que é possível levar alguém a vencer a violência que em si reside. Surpreendente é ainda a presença de música (não diegética, em concreto um excerto do adágio do
Concerto Nº 5 para Piano e Orquestra - Imperador, de Beethoven), que procura sobretudo apaziguar depois de momentos de dor, como que se a música pudesse ser, tal como na plateia, escutada pelo jovem e magoado Cyril.
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