segunda-feira, agosto 01, 2011

Viver e morrer na televisão

AMY WINEHOUSE (1983-2011)
Definitivamente, para muitas formas (e formatos) televisivos, a vida dos outros já não basta: é preciso tomar o poder também sobre os sentidos, as imagens e as emoções da morte de cada um. Vivemos a idade da aniquilação pública do pudor — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 de Julho).

Já não se pode morrer em paz. No caso de Amy Winehouse, falecida a 23 de Julho, contava 27 anos, não bastaram as atribulações da vida. Pelas televisões de todo o mundo (enfim, por muitas daquelas a que temos acesso através do cabo), perpassou uma narrativa perversamente determinista: “Já se sabia que estava para acontecer...”
Como? A perversão, entenda-se, é exclusivamente jornalística. Muitas formas de jornalismo televisivo arrogam-se o direito (que assumem como um dever) de “reorganizar” o mundo à nossa volta, atribuindo-lhe sentidos supostamente universais. Já não se morre apenas: morre-se para celebrar o carácter normativo das notícias.
Daí que tudo se equivalha. Há dias, no concurso Quem Quer Ser Milionário, o apresentador e um concorrente debatiam mesmo uma operação às varizes que o segundo tinha feito... E não me interpretem mal: não censuro a candura do concorrente, convocado para enfrentar um milhão de espectadores como se estivesse a falar para o seu agregado familiar, nem duvido da boa fé do apresentador, genuinamente preocupado com o estado de saúde do seu interlocutor.
O que importaria reconhecer (é sempre o mais difícil: apenas reconhecer...) é que, em muitos momentos, a televisão se transformou neste pueril “consultório” social: face à brutalidade indizível de uma morte ou perante o mais privado acontecimento da vida de um cidadão, tudo pode ser tratado como elemento de uma beatificada normalização. Afinal de contas, a esmagadora maioria dos comentadores de futebol acredita que os resultados dos jogos são uma questão de “justiça”... Dir-se-ia que a televisão se substituiu aos sacerdotes que já não temos, procedendo como se os seus recursos discursivos estivessem em contacto directo com a transcendência de todas as coisas.