Porque é que as televisões se comportam como se conhecessem o sentido imediato e definitivo da vida seja de quem for? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 de Maio), com o título 'Lição de semiologia'.
* Conheço há décadas uma muito empenhada forma de difamação do trabalho dos críticos de televisão. Assim, os críticos, irremediavelmente entregues aos seus delírios semiológicos (e note-se que, neste discurso, a palavra “semiologia” funciona como um insulto), viveriam obcecados pela atribuição de um sentido a cada coisa que acontece no pequeno ecrã.
Desse modo se ignora uma componente básica de qualquer discurso crítico. A saber: o gosto, não exactamente pelo sentido das coisas, mas pelo modo como essas mesmas coisas produzem sentido. Falo de quê? De futebol, por exemplo. Os nossos admiráveis comentadores insistem em conferir aos jogos um sentido de justiça, dividindo os resultados em “justos” e “injustos”. Ora, o crítico de televisão pergunta: que aconteceu para que, num desporto tão marcado pelo sabor (e pelo prazer!) de factores acidentais, se tenha insinuado este conceito de justiça? E, já agora: qual a instância de tribunal que assegura a sua prossecução? Ou ainda, não esquecendo o domínio social da questão: quais os efeitos discursivos e éticos de tal noção de justiça nos espectadores?
* Agora, com o casamento dos príncipes britânicos, compreendi melhor a motivação interior para a difamação dos críticos. De facto, são as televisões, não os críticos, que se assumem como entidades capazes de conferir sentido a tudo. Através de William & Kate, triunfou mesmo uma pueril vertigem: desde os vestidos até ao timing da cerimónia, passando pelos beijos, tudo tinha um sentido... Como se cada evento do mundo estivesse apenas à espera de ser apropriado pela televisão, nele revelando a transcendência de um qualquer sentido “oculto”.
* Tudo está sujeito a tal mecânica: um golo de futebol ou um casamento real... Até mesmo o simples facto de alguém participar num qualquer concurso: em televisão, todos os dias alguém assume o poder (em nome de quê?) de revelar o sentido da vida dos outros. No plano social, tal prática parece corresponder à vontade da televisão funcionar como entidade de vocação religiosa. Em termos banalmente semiológicos, isso tem um nome esclarecedor: ditadura do sentido.