Manoel de Oliveira escreveu O Estranho Caso de Angélica em 1954, quer dizer, ao longo de mais de meio século não desistiu de o concretizar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 de Maio), com o título 'A magia segundo Manoel de Oliveira'.
Há pelo menos uma geração de jovens espectadores, quase sempre consumidores regulares de downloads da Internet, que tem sido educada (e, sobretudo, deseducada) para julgar que o fantástico é, em cinema, uma consequência directa dos “efeitos especiais”. Assim se favorece uma visão maniqueísta centrada na exaltação do poder tecnológico de Hollywood que, na prática, nem sequer faz justiça à fascinante diversidade criativa, presente ou passada, do cinema americano.
Em tal contexto, o novo filme de Manoel de Oliveira, O Estranho Caso de Angélica, não pode deixar de surgir como um objecto fora de moda. Maravilhosamente fora de moda, acrescento eu, quanto mais não seja porque nele reeencontramos um gosto primitivo do cinema em que a possibilidade do fantástico não nasce de nenhum novo-riquismo técnico, enraizando-se antes na paixão pelas imagens como elementos de deliciosa potência mágica.
Vale a pena recordar o mistério central do filme. Tem a ver com a desconcertante experiência de Isaac (Ricardo Trêpa), a quem é pedido para fotografar a jovem Angélica (Pilar López de Ayala), recentemente falecida; ao contemplá-la no visor da sua Leica, o fotógrafo descobre a morta a sorrir-lhe... O fantástico instala-se nesse preciso instante, mas não porque o filme o anuncie com explosões e ruídos. Não esquecendo a lição original do cinema mudo, Oliveira sabe que o fantástico não resulta apenas, nem sobretudo, da situação que se filma. Em boa verdade, o fantástico é uma tendência (será uma perversão?) constitutiva da própria imagem. No limite, para Isaac, a Angélica que sorri “dentro” da sua máquina fotográfica é mais real que aquela que jaz, inerte, no canapé da sala.
Oliveira escreveu o argumento de O Estranho Caso de Angélica em 1954 (está publicado numa edição da Cinemateca Portuguesa, datada de 1988). Quer isto dizer que nunca desistiu da possibilidade da sua concretização, certamente por reconhecer no seu dispositivo a essência de toda uma peculiar visão artística das imagens, sejam elas fotográficas ou cinematográficas. Podemos, afinal, encontrar a manifestação dessa visão em momentos decisivos da filmografia do autor, incluindo Benilde ou a Virgem Mãe (1975), Os Canibais (1988), Viagem ao Princípio do Mundo (1997), Vou para Casa (2001) e Espelho Mágico (2005).
Apresentado no Festival de Cannes de 2010, O Estranho Caso de Angélica existe, em última instância, como um filme de resistência. E no sentido mais visceral que a palavra pode adquirir na dinâmica da arte e da cultura tal como, a certa altura, Jean-Luc Godard a definiu: a singularidade do gesto artístico, proclamando o seu desejo de magia, resiste à facilidade da normalização cultural (tal como todos os dias é favorecida pelo imaginário televisivo). O trabalho de Oliveira continua a ajudar-nos a acreditar nas imagens e na sua vocação transformadora.