Onde o esquecimento de Clint Eastwood se cruza com a imprensa cor-de-rosa made in Portugal. E também com a passividade intelectual da nossa classe política — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 de Janeiro), com o título 'As muitas mortes de Carlos Castro'.
Na próxima quinta-feira, estreia nas salas de cinema portuguesas uma obra-prima de Clint Eastwood, intitulada Outra Vida (Hereafter). É um filme tanto mais estranho e inesperado quanto parece distante das componentes temáticas com que costumamos caracterizar o universo do realizador: nele encontramos uma teia mágica, sustentada por três personagens que, de uma maneira ou de outra, se relacionam com “algo” que está para além da morte.
Não será preciso possuir dons de adivinhação para garantir que o filme de Eastwood não terá nem uma milésima parte da visibilidade jornalística (e, em particular, televisiva) dada à morte de Carlos Castro, em Nova Iorque. Estamos mesmo a assistir a uma avalanche mediática que só encontra alguma semelhança com a histeria montada em torno de “acontecimentos” como a agressão de Paulinho Santos, com o cotovelo, a João Pinto num jogo de futebol da temporada de 1997/98. É verdade: há muitos anos que vivemos sob o jugo deste imaginário do “escândalo” e da “polémica”. E se alguns leitores poderão ficar chocados com o paralelismo entre um mero episódio de um jogo de futebol e a morte brutal de um ser humano, permitam-me que sublinhe que o ponto é mesmo esse: não se trata, aqui, de analisar nenhum dos factos mencionados, mas sim de verificar que qualquer ocorrência, da caricatura à tragédia, pode servir para organizar este aparato de coisa nenhuma. A regra é sempre a mesma: transfigurar o espaço público em pueril tribunal popular, com cada cidadão a ser forçado a assumir-se como “juiz” do que lhe colocam à frente dos olhos.
A conjuntura é tanto mais deprimente quanto assistimos à devoração simbólica da figura de Carlos Castro pela própria imprensa (cor-de-rosa) no interior da qual ele se exprimiu. Numa atitude de militante despudor, a sua morte tem sido, e continuará a ser, rentabilizada até ao vómito, num contexto que, todos os dias, cinicamente, promove os valores do “amor” e da “felicidade”. Mais do que isso: toda esta vulgarização dos factos e das pessoas participa, nem que seja pela sua cândida indiferença, num ambiente de difamação e escárnio dos homossexuais que desafia, por definição, os próprios fundamentos da vida democrática.
Ironicamente (mas é uma ironia cruel), estamos também a viver uma campanha eleitoral que, com obscena exuberância, tem mostrado a miséria de pensamento que passou a dominar a nossa vida política. Como cidadão eleitor, choca-me que nenhum candidato presidencial tenha uma palavra a dizer sobre esta redução das relações sociais a um estúpido jogo de video onde a maioria das notícias apenas celebra o modo como alguém lançou uma qualquer bomba mediática nas barricadas do adversário. Felizmente, com o 25 de Abril nasceram novas oportunidades para fazer jornalismo. Mas nasceram também muitos políticos que não têm nada a dizer sobre o jornalismo que se faz.