domingo, dezembro 19, 2010

Televisão: os sons e a sua escuta


Universo plural de imagens, a televisão é também uma paisagem de muitos sons... mas será que ainda há capacidade de escuta? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 de Dezembro), com o título 'Os sons que (não) se ouvem'.

1. Há uma cultura televisiva, alheia a qualquer reminiscência cinéfila, que é totalmente indiferente ao som. Confesso que as suas manifestações me chocam sempre, não pelas pessoas envolvidas, mas por essa indiferença que se propaga. Exemplo: o ambiente sonoro em que foi vivido o espantoso Manchester United-Arsenal de segunda-feira à noite (SportTV). Como é possível que os comentadores tenham falado, falado, falado... sem se aquietarem ao menos por uns segundos para exercer esse dom humano, demasiado humano, que é escutar?

2. Um dos sintomas mais crus, e também cruéis, da formatação televisiva é a marginalização dos respectivos espaços musicais. Numa paisagem dominada por telenovelas e concursos, a música tornou-se um parente pobre das programações, a ponto de uma estrela pop de âmbito planetário poder ser tratada como produto noctívago para “especialistas”. Programas como Ídolos (SIC) ou Operação Triunfo (RTP1) são simpáticas bolsas de resistência, mas convenhamos que decorrem de uma cultura televisiva em que a simulação é mais valorizada que os originais. Em todo o caso, não simplifiquemos a ponto de vermos em tudo isso um “mal português” para ser discutido em mais algum interminável debate de monotonias institucionais... A decomposição simbólica da música no interior do espaço televisivo é uma tendência cujo sinal mais ostensivo se pode encontrar na degradação, aparentemente irreversível, do conceito original da MTV: como é possível que o canal que nos anos 80 desempenhou um papel genuinamente renovador nos modos de ver/ouvir a música se tenha convertido às inanidades da reality TV e trate os jovens como meros consumidores sem imaginação?

3. Na série Mad Men (RTP2), as canções não surgem como uma espécie de “discos pedidos” da época retratada. Dito de outro modo: não há nenhuma nostalgia do paraíso perdido. Os anos 60 são mesmo encenados como berço de muitos fantasmas e ilusões que continuam a acompanhar-nos. Ouvimos uma canção de Bob Dylan e sentimos a intensidade da grande ficção, quer dizer, do seu gosto pela complexidade da história.