terça-feira, dezembro 14, 2010

Século XXI — ser ou não ser (2/2)


Na sua edição de 5 de Dezembro, a revista "Notícias Magazine", do Diário de Notícias, foi dedicada às ideias que dominaram a primeira década do século XXI, organizadas a partir de nove temas: Ambiente / Crise / Redes Sociais / Mulher / Justiça / Eu / Terrorismo / Genoma — esta é a segunda parte do texto que escrevi, para ilustrar o tema "Eu", com o título 'Depois do apocalipse'.

[ 1 ] Veja-se como a mais banal “personalização” e, sobretudo, os seus excessos e disparates foram promovidos à condição de espelho da democracia. Desde logo, online. A blogosfera, porventura a mais contraditória e fascinante invenção da celebração contemporânea do “Eu”, é também um dos espaços mais corrompidos pela confusão entre os confrontos da comunicação e a obscenidade dos conflitos: mentir, difamar e insultar o(s) outro(s) é mesmo frequentemente celebrado como apoteose do diálogo democrático. Faça-se um blog sem comentários e aguardem-se as reacções: haverá sempre quem, ofendido em nome do “transparência” da Internet, garanta que a democracia não está a ser devidamente satisfeita.
Há um preço radical que vamos pagando com tudo isto, e por tudo isto: é o da trágica decomposição da Política como espelho nobre das nossas diferenças, e também da nossa capacidade de diálogo. As esmagadoras percentagens de abstencionistas nos actos eleitorais são disso o sinal mais evidente, tristemente recalcado por quase todos actores da vida política (e também, claro, pelo reaccionarismo filosófico das televisões, apenas empenhadas em gerir a sua realidade alternativa). Neste mundo saturado de ilusões de oportunidades para dizermos “eu” e proclamarmos a nossa “individualidade”, tornou-se cada vez mais problemático fazer passar o valor mais clássico, e também mais visceral, da política: Nós.
No século XX, “freudiano”, aprendemos essa lição difícil, e dificilmente sensual, de que todas as ideias passam pelo corpo. Mesmo, ou sobretudo, quando, de acordo com a hipótese formulada por Roland Barthes [foto], o meu corpo não tem as mesmas ideias que eu. Neste nosso presente de infinitas redes de comunicação, o corpo reduziu-se a um “objecto” mutável, tão importante e tão irrisório para a obrigatória personalização como o telemóvel ou o Facebook.
Porventura não por acaso, em 1999, portanto nas vésperas do século XXI, um filme de David Fincher, Clube de Combate (baseado no livro homónimo de Chuck Palahniuk), legou-nos um herói emblemático deste apocalipse identitário: Tyler Durden (interpretado por Brad Pitt) é esse jovem sem juventude que promove combates em que a única regra é... não haver regras. Se for caso disso, até à morte dos lutadores. Porquê? Por nada. A não ser, talvez, a transparência gélida de uma nova religião sem deuses. É ele que o diz: “Só podemos ressuscitar depois do desastre.”
Ainda assim, na sua fúria destrutiva, Tyler Durden conserva a paixão da palavra poética. É um herói do nosso presente, mas com raízes num tempo primitivo, clássico e político. Será que nos vamos esquecer desse tempo em que havia amigos sem estar online? Era um tempo em que outro poeta, Herberto Helder, escrevia: “Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.”