De uma representação de Hamlet, pela Saratoga Shakespeare Company
Na sua edição de 5 de Dezembro, a revista "Notícias Magazine", do Diário de Notícias, foi dedicada às ideias que dominaram a primeira década do século XXI, organizadas a partir de nove temas: Ambiente / Crise / Redes Sociais / Mulher / Justiça / Eu / Terrorismo / Genoma — esta é a primeira parte do texto que escrevi, para ilustrar o tema "Eu", com o título 'Depois do apocalipse'.
A 15 de Maio de 1871, numa célebre carta ao seu amigo Paul Demeny, o francês Arthur Rimbaud condensou a sua solidão criativa numa expressão que se transformaria numa espécie de lema existencial para o homem do século XX: “Eu é um outro.”
De que falava, afinal, o poeta? Celebrando a necessidade de lidar com “todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura”, Rimbaud atribuía ao poeta (“Poeta”) um radical programa de sofrimento: “Inefável tortura em que ele tem necessidade de toda a fé, de toda a força sobre-humana, em que entre todos se transforma no grande doente, no grande criminoso, no grande maldito — e no supremo Sábio.”
No século XXI, já não há poetas malditos. Nem solidões radicais. Mas temos o Facebook e a sua estonteante glória: mais de 500 milhões de pessoas inscritas numa rede de “amigos” (espantosa banalização de uma palavra que já teve o valor sagrado de uma raridade) que lhes garante que o seu “eu” está sempre em ligação com algum “outro”.
Na página de entrada do Facebook , um austero mapa do mundo, habitado por uma série de rudimentares figurinhas humanas, sugere infinitas ligações entre as suas personagens. Qual a distância entre o estudante universitário de Harvard, fechado no quarto, e o pastor errante na imensidão das planícies da Mongólia? Entre o esquimó recolhido no seu iglô e o africano à procura do último santuário dos elefantes? Nenhuma… Click! E estamos do outro lado do planeta! Ou, pelo menos, protagonizamos a ilusão de viajar num mapa virtual.
Acabou-se, assim, a angústia do “ser ou não ser” do Príncipe da Dinamarca: o outro é, agora, apenas uma variante electrónica do meu eu. Entrámos na idade do narcisismo sem culpa. E se alguém evocar as lições cruéis de Sigmund Freud (ele que trabalhou a difícil herança de Rimbaud, enfrentando os medos e fantasmas do nosso século XX), corre o risco de passar por estúpido e pretensioso. Ou apenas de cometer o pecado de estar offline. Nas auto-estradas da informação, Shakespeare [imagem] viu-se coagido a mudar de emprego: estar ou não estar online, eis a questão.
Não admira que, socialmente, nos ofereçam todos os dias os mais variados privilégios desse “abre-te Sésamo!” contemporâneo que é a personalização. Tudo, mas mesmo tudo, passou a ser personalizado: os gadgets do automóvel, o desenho da mobília, as compras do supermercado... O telemóvel, essa pedra preciosa da comunicação, instalou-se no nosso quotidiano como o objecto supremo da personalização. E tanto mais quanto, todos os dias, alguma marca nos lança à cara mais uma promoção que garante mais possibilidades de ligação por melhor preço.
A tragédia íntima do nosso viver futurista desenha-se aí: somos educados apenas para desejar cada vez mais circuitos de informação, mas já quase não se pensa que informação circula e, sobretudo, o que fazemos com ela. O adolescente online faz mesmo gala em coleccionar mais faixas de música do que aquelas que a sua existência mortal alguma vez lhe permitirá escutar. Isto para já não falarmos do facto de os ruídos das linguagens dominantes (a começar pela publicidade televisiva) nos terem feito esquecer que saber escutar é uma arte eminentemente humana, sem a qual nenhuma partilha é possível.
[continua]