quinta-feira, dezembro 30, 2010

Material Glee


A série Glee envolve uma estimulante aposta na revisitação do património musical do cinema. E também na recriação de grandes referências pop — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 de Dezembro), com o título '"Glee" reinventa música de Madonna"'.

Pelo menos desde a década de 60, depois de filmes emblemáticos como West Side Story (1961), My Fair Lady (1964) ou Hello, Dolly! (1969), o grande espectáculo cinematográfico vive assombrado por uma angústia estética aparentemente sem solução: será possível refazer o fulgor clássico do género musical? Tentativas não têm faltado, algumas brilhantes, a maior parte mais ou menos desastradas. Em boa verdade, para além dos talentos envolvidos, falta algo de essencial: uma base de produção estável (como a que existiu nas décadas de 1940/50, em Hollywood), capaz de sustentar todas as componentes técnicas e artísticas que o musical exige.
Ao longo de 2010, a série televisiva Glee, do canal americano Fox, constituiu uma resposta insólita, paradoxal e, em muitos aspectos, fascinante. Retratando alunos e professores de um colégio em que a actividade musical é determinante, Glee possui essa consistência de produção (televisiva), ao mesmo tempo que aposta numa visão multifacetada das matérias musicais que, para além da mera “cópia”, sabe integrar muitos valores do património clássico.
Uma pequena obra-prima de Glee serve para ilustrar a sua peculiar energia: escrito e dirigido por Ryan Murphy (um dos criadores da série), o episódio nº15 da primeira temporada, intitulado “O Poder de Madonna”, consegue reinventar o património musical da Material Girl, ao mesmo tempo que celebra, com irónica precisão, a sua singular defesa da individualidade afectiva e sexual. A primeira difusão ocorreu, nos EUA, a 20 de Abril; entre nós, surgiu há poucos dias no canal Fox Life (que começará a emitir a segunda temporada no dia 9 de Janeiro).
Como seria inevitável, Glee passa por alguns dos clássicos com que Madonna transfigurou a paisagem da música pop, incluindo Like a Prayer, Express Yourself e Vogue, este recriado mesmo em formato de teledisco, citando, imagem a imagem, o original realizado por David Fincher [video em baixo: Jane Lynch comenta a rodagem].
Em todo o caso, o resultado está muito longe de uma mera colagem de hits: “O Poder de Madonna” funciona como uma câmara de eco da simbologia inerente ao universo de Madonna, a começar pela drástica interrogação dos (des)equilíbrios tradicionais entre masculino e feminino.
Somos confrontados, por exemplo, com What it Feels Like for a Girl, belíssimo hino de exaltação do feminino, agora cantado por um muito (auto)crítico coro de rapazes. Além do mais, a encenação de Like a Virgin fica para a história: Glee apresenta a canção interpretada por vários pares em exuberante actividade sexual, para acabar por revelar toda a encenação como um artifício de espectáculo cujo contraponto é uma contida ausência de sexo. Sobra o quê? O medo e a sua ironia. E convenhamos que não é todos os dias que alguém tem a honestidade moral de reconhecer que o medo do sexo é essencial para compreendermos o fulgor artístico de Madonna.