domingo, setembro 12, 2010
E a árvore floriu
N.G.: A história da arte mostra-nos como frequentemente a invenção se alia à reinvenção para, olhando em frente e assimilando o que vem de trás, assim dar novos passos. John Adams, talvez o mais interessante (e um dos mais prolíficos) compositores de ópera do nosso tempo, concebeu em A Flowering Tree uma das mais belas criações de uma obra de absoluta referência na música de um presente em permanente construção. Escutou ecos da memória d’A Flauta Mágica de Mozart, contextualizou-os no cenário de um conto tradicional indiano. E compondo uma música incrivelmente rica em invenção melódica (cada vez mais distante da matriz minimalista do absolutamente marcante Nixon in China, de finais dos oitentas), fez de A Flowering Tree uma das mais belas óperas nascidas na década dos zeros.
Felizmente não foi preciso esperar muito tempo para ouvir (e ver) A Flowering Tree em Lisboa. E no concerto de sábado, aquele que se apresentava logo à partida como um dos episódios centrais do Festival Mozart (que abre a temporada da Gulbenkian este ano) resultou numa das melhores noites de música em palco que o ano lisboeta ouviu. Já com um triunfo parisiense com esta mesma ópera assinalado há alguns meses, a maestrina Joana Carneiro (assistente de John Adams à altura da estreia mundial de A Flowering Tree em 2006) a orquestra e coro Gulbenkian foram magistrais, devidamente acompanhados por três vozes igualmente espantosas, juntos corporizando história e música, sublinhando as suas qualidades narrativas e emotivas. A solução cénica encontrada para dar vida à versão de concerto que se anunciava foi valor acrescentado numa noite em que todos os elementos convocados somaram importante contribuição. A movimentação em palco, a opção por maximizar o minimalismo do elenco através de gestos que fizeram os cantores vestir ocasionalmente as peles de outras personagens e o belíssimo trabalho em vídeo (e as legendas liam-se tão bem!) ajudaram a árvore a florir. Com casa cheia a aplaudir em pé no final… E com vontade (assim espero) de ver, num futuro próximo, mais ópera de John Adams neste palco, seja com o já histórico Nixon in China ou o mais recente Doctor Atomic, em ambos os casos ainda sem estreia por estes lados…
J.L.: Será que existe, ou pode existir, um novo espaço de expressão susceptível de reintegrar o apelo do sagrado? Tendo em conta tendências várias da mais recente produção artística, não será arriscado considerar que A Flowering Tree constitui uma resposta muito especial — e também moralmente preciosa. Isto porque John Adams [foto] repõe a possibilidade de uma transcendência que está longe de se esgotar no mero ritual religioso (com toda a problemática da crença que, necessariamente, o envolve): esta é uma obra em que o impulso do sagrado nasce de uma transcendência paradoxal, em tudo e por tudo ligada à sensualidade da Natureza e das suas formas — seguimos, afinal, a história de uma terra de mel e elefantes... O que vimos e ouvimos no Grande Auditório foi a celebração modelar desse sentimento de pertença a um desígnio imenso, luminoso ou maligno, mas sem deuses castigadores. Apenas a maravilhosa pluralidade do factor humano, incluindo a bondade e o seu terrível contrário.