sábado, junho 12, 2010

A beatificação de Manuela Moura Guedes

MARC CHAGALL
Cântico dos Cânticos II
1957

Referindo-se à questão da implicação de José Sócrates na compra da TVI pela PT, o deputado João Semedo esclareceu que não foi possível provar a origem do "conhecimento informal" que o primeiro-ministro teria do assunto.
Quer isto dizer que a Comissão de Inquérito ao "caso TVI" produziu um redondo zero. Ou seja: não há implicação política decorrente dos seus trabalhos, a não ser a reiteração daqueles que consideram que o primeiro-ministro mentiu. Têm, desde o princípio, toda a legitimidade para o fazer. O certo é que ocuparam um ano do tempo português para sustentar algo que nem sequer adquiriu pertinência política, ficando-se pelo sanção unilateral do seu discurso moral.

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Nas notícias ficamos também a saber que João Semedo situa as duas tentativas de aquisição da TVI num contexto em que "a linha editorial da informação produzida pela TVI e, em particular, o Jornal Nacional de Sexta apresentado pela jornalista Manuela Moura Guedes, eram alvo de críticas públicas, recorrentes e contundentes, por parte do primeiro ministro, membros do Governo e dirigentes" do PS.
Quer isto dizer que a comissão considera que está a prestar um bom serviço à democracia denunciando as críticas "recorrentes e contundentes" do primeiro-ministro a Manuela Moura Guedes. O subtexto é: tais críticas desqualificam quem as profere, tornando-o mesmo suspeito de vocação ditatorial — relança-se, assim, a mais pueril doença da democracia, a desqualificação da própria pluralidade que a habita, bloqueando a discussão daquilo que suscita os contrastes e contradições inerentes a essa pluralidade. A saber, neste caso: o Jornal Nacional de Sexta apresentado pela jornalista Manuela Moura Guedes.

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João Semedo — e, genericamente, a comissão de inquérito — conseguiu promover uma discussão (?) de meses e meses sobre o "carácter" (mentir/não mentir) de José Sócrates e os seus efeitos malignos na democracia portuguesa. E conseguiu-o sem, NEM UMA ÚNICA VEZ, questionar o Jornal Nacional de Sexta apresentado pela jornalista Manuela Moura Guedes e o seu lugar na dinâmica democrática portuguesa [questionar significa, aqui, três coisas: discutir as suas matrizes populistas de informação; desmontar as suas estratégias audiovisuais de produção de "efeitos de verdade"; compreender o seu lugar nas representações globais da sociedade portuguesa sustentadas pela TVI, incluindo no espaço específico da ficção e, em particular, nas telenovelas.].
Quer isto dizer que assistimos a um fenómeno surreal que importa, pelo menos, descrever, tanto mais que a sua importância simbólica não se dissipa, mesmo que se venha a provar que José Sócrates é um malfeitor que merece a prisão perpétua (espero, aliás, se for esse o caso, que a justiça seja rigorosa e exemplar). Que fenómeno é esse? O obsceno esvaziamento factual e filosófico do item "Manuela Moura Guedes" em todo este processo parlamentar e mediático — na história da democracia em Portugal, será preciso, agora, escrever um capítulo consagrado à sua beatificação.