quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Jornalismo: o mito da neutralidade

OTTO DIX
Caveira
1924

1. Portugal, Fevereiro de 2010. Um dos sinais mais dramáticos da pobreza (para não dizer vazio) do debate público sobre o papel social do jornalismo é um duplo pressuposto instalado: primeiro, os políticos são potencialmente corruptos; segundo, os jornalistas são obrigatoriamente angelicais.

2. Não é fácil sair deste maniqueísmo, quanto mais não seja porque, encontrando resistência, a ideologia mediática dominante — o seu poder é esse: dominar — tende a empurrar-nos para uma espécie de maniqueísmo simétrico. Como se se tratasse de "demonstrar" que pode haver políticos honestos e jornalistas corruptos...

3. Tudo isso é uma argumentação possível. Mas não chega. De facto, o cerne da questão reside num dos maiores e mais obscenos recalcamentos instalados na sociedade portuguesa: o de que ser jornalista é trabalhar a partir de um lugar imaculado e, mais do que isso, incontestável a que só se pode dar o nome de neutralidade.

4.Ora, ninguém é neutro. Ninguém. A começar pelo jornalista. Como qualquer observador/relator, ele é alguém que escolhe: escolhe o que olhar, de onde olhar, para onde não olhar; escolhe o que dizer, como dizer, como evitar dizer. O que o jornalista produz não é uma "fotocópia" da realidade, mas sim uma construção narrativa (por palavras, imagens, etc.) que existe como uma nova realidade que se vai somar àquela de onde partiu.

5.Reconhecer isto não é lançar nenhuma suspeita sobre a actividade jornalística. Bem pelo contrário: é reconhecer a sua complexidade prática e conceptual, celebrando também a sua imensa responsabilidade narrativa, simbólica e filosófica. Por isso, cada vez que um jornalista nos quer convencer da sua virgindade cognitiva — "olhem para mim a dar-vos um ponto de vista que não podem contestar" —, acontece uma mentira. Não necessariamente factual, mas ontológica.