Não faz sentido olhar/tratar/pensar o cinema americano como um objecto uno e indivisível. Bem pelo contrário: hoje como sempre, a sua vitalidade está na sua diversidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 de Fevereiro), com o título 'Dois homens realistas e americanos'.
Pensemos numa data qualquer: 1968, por exemplo. Que estava a acontecer no cinema americano? Depois das canções, Barbra Streisand consagrava-se como estrela cinematográfica em Funny Girl. Os Oscars premiavam o academismo britânico de Oliver!, ao mesmo tempo que John Cassavetes, independente avant la lettre, filmava o incrível Faces. Um eremita de génio, de nome Stanley Kubrick, oferecia ao mundo uma “coisa” inclassificável chamada 2001: Odisseia no Espaço. Serão precisos muitos exemplos para recordar que a energia do cinema americano provém, não de uma qualquer unidade temática ou estética, mas desta exuberante e contraditória pluralidade?
Isto para dizer que estamos todos a ficar um bocadinho cansados de acreditarmos (ou nos fazerem acreditar) que os efeitos especiais são o “abre-te Sésamo” de toda a história do cinema e que, além do filme Avatar, a actualidade se reduz aos milhões de dólares de Avatar, ao marketing de Avatar e às três dimensões de Avatar!
Um Homem Sério, de Joel e Ethan Coen, e Um Homem Singular, de Tom Ford, aí estão para lembrar que o cinema americano alberga discretas e fascinantes experiências, ligadas a uma mesma interrogação existencial que nenhum efeito especial consegue, por si só, encenar. A saber: como é que a experiência individual se encaixa na dinâmica do colectivo? Ou ainda: como é que o real que nasce da acção da colectividade coincide (ou não) com a experiência interior das personagens?
O filme dos Coen consegue algo de prodigioso: colocar em cena a tensão constante, porventura irresolúvel, entre um homem (professor) que tenta cumprir as leis do seu universo social e cultural, de raízes judaicas, falhando sistematicamente e atraindo as mais diversas penalizações. É uma fábula rara nos dias que correm, já que filma, não a marginalidade ética, mas o desejo de cumprir a Lei. E consegue-o no mais puro, e também mais desconcertante, registo de comédia social. Tom Ford, por sua vez, filma o âmago da perda amorosa. Que a personagem central (também um professor, hélas!) viva o luto brando, mas infinito, da morte do seu amante, eis o que lhe confere um singular poder shakespeareano: o de contemplar o mundo como palco de um interminável furor, por vezes rasgado por um beleza quase intolerável.
Para além das suas muitas diferenças, Um Homem Sério e Um Homem Singular relançam-nos na tradição imensa (também ela plural e contraditória) do realismo. E atenção: ser realista não é filmar as coisas “como elas são”. Isso fazem os telejornais e, quase sempre, limitam-se a reproduzir os clichés que já vão nos olhos que filmam. Ser realista começa no reconhecimento de que... não sabemos como as coisas são. Daí que estes sejam também filmes de infinita dedicação aos actores. Michael Stulhbarg (Um Homem Sério) e Colin Firth (Um Homem Singular) encarnam a requintada expressão desse espanto face às revelações e enigmas do real. Num mundo perfeito, ambos estariam nomeados para os Oscars. Na verdade, apenas Colin Firth teve esse reconhecimento, o que significa que a imperfeição de Hollywood continua a ser maravilhosamente humana.
Pensemos numa data qualquer: 1968, por exemplo. Que estava a acontecer no cinema americano? Depois das canções, Barbra Streisand consagrava-se como estrela cinematográfica em Funny Girl. Os Oscars premiavam o academismo britânico de Oliver!, ao mesmo tempo que John Cassavetes, independente avant la lettre, filmava o incrível Faces. Um eremita de génio, de nome Stanley Kubrick, oferecia ao mundo uma “coisa” inclassificável chamada 2001: Odisseia no Espaço. Serão precisos muitos exemplos para recordar que a energia do cinema americano provém, não de uma qualquer unidade temática ou estética, mas desta exuberante e contraditória pluralidade?
Isto para dizer que estamos todos a ficar um bocadinho cansados de acreditarmos (ou nos fazerem acreditar) que os efeitos especiais são o “abre-te Sésamo” de toda a história do cinema e que, além do filme Avatar, a actualidade se reduz aos milhões de dólares de Avatar, ao marketing de Avatar e às três dimensões de Avatar!
Um Homem Sério, de Joel e Ethan Coen, e Um Homem Singular, de Tom Ford, aí estão para lembrar que o cinema americano alberga discretas e fascinantes experiências, ligadas a uma mesma interrogação existencial que nenhum efeito especial consegue, por si só, encenar. A saber: como é que a experiência individual se encaixa na dinâmica do colectivo? Ou ainda: como é que o real que nasce da acção da colectividade coincide (ou não) com a experiência interior das personagens?
O filme dos Coen consegue algo de prodigioso: colocar em cena a tensão constante, porventura irresolúvel, entre um homem (professor) que tenta cumprir as leis do seu universo social e cultural, de raízes judaicas, falhando sistematicamente e atraindo as mais diversas penalizações. É uma fábula rara nos dias que correm, já que filma, não a marginalidade ética, mas o desejo de cumprir a Lei. E consegue-o no mais puro, e também mais desconcertante, registo de comédia social. Tom Ford, por sua vez, filma o âmago da perda amorosa. Que a personagem central (também um professor, hélas!) viva o luto brando, mas infinito, da morte do seu amante, eis o que lhe confere um singular poder shakespeareano: o de contemplar o mundo como palco de um interminável furor, por vezes rasgado por um beleza quase intolerável.
Para além das suas muitas diferenças, Um Homem Sério e Um Homem Singular relançam-nos na tradição imensa (também ela plural e contraditória) do realismo. E atenção: ser realista não é filmar as coisas “como elas são”. Isso fazem os telejornais e, quase sempre, limitam-se a reproduzir os clichés que já vão nos olhos que filmam. Ser realista começa no reconhecimento de que... não sabemos como as coisas são. Daí que estes sejam também filmes de infinita dedicação aos actores. Michael Stulhbarg (Um Homem Sério) e Colin Firth (Um Homem Singular) encarnam a requintada expressão desse espanto face às revelações e enigmas do real. Num mundo perfeito, ambos estariam nomeados para os Oscars. Na verdade, apenas Colin Firth teve esse reconhecimento, o que significa que a imperfeição de Hollywood continua a ser maravilhosamente humana.