terça-feira, novembro 24, 2009

Bósnia - Portugal: a guerra?

Bandeira da BÓSNIA E HERZEGOVINA

O recente Bósnia-Portugal, em futebol, foi pretexto para as mais disparatadas "análises" históricas. Será que já ninguém atende à inevitável complexidade da história de um país, seja ele qual for? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 de Novembro), com o título 'Será que a Bósnia já invadiu Portugal?'.

Cada vez mais, a mentalidade televisiva dominante funciona por rimas “informativas”. A selecção de futebol da Bósnia ia defrontar a equipa portuguesa (em jogo decisivo de apuramento para o Mundial de 2010) e começaram a circular observações mais ou menos paternalistas sobre aquele “povo”: estávamos, afinal, a defrontar a selecção de um país que tinha vivido uma terrível guerra civil. Logo, estão a ver relação... futebol/guerra? Pela mesma lógica, não nos admiremos que, um dia destes, quando se realizar um Portugal-Espanha, alguém venha evocar os traumas deixados pelo domínio dos Filipes...
Tal mentalidade ignora qualquer genuína vontade de conhecer os outros (sejam eles quem forem). O que conta é a possibilidade de lidar com as imagens de modo a sugerir alguma linha de “causalidade”: subitamente, um rectângulo verde com 22 jogadores atrás de uma bola só podia ser um novo cenário de guerra.
Veio, depois, uma vaga de obscenidades analíticas (também em algumas interven-ções radiofónicas, importa acrescentar) sobre o comportamento dos espectadores bósnios e os problemas de segurança no estádio da cidade de Zenica. Porque seis dezenas de adeptos conflituosos insultaram os atletas portugueses à chegada ao aeroporto de Sarajevo, traçou-se um quadro, no mínimo, apocalíptico: a equipa portuguesa podia caminhar para um linchamento em campo. Será que a Bósnia ia invadir Portugal? Curiosamente, ninguém referiu o vergonhoso comportamento dos espectadores que, quatro dias antes, no Estádio da Luz, tinham assobiado o hino da Bósnia (no que, aliás, foram imitados por muitos espectadores bósnios, em Zenica, quando se ouviu o hino português).
O problema que aqui se refere não é, obviamente, o das questões de segurança num jogo de futebol (cuja importância não está em causa). Além do mais, não somos distraídos e sabemos que espectadores facciosos existem, infelizmente, em todos os contextos. O problema está neste discurso “jornalístico” em que, pelos vistos, basta ter um microfone à frente para se tecerem as mais disparatadas considerações, não apenas sobre o que sejam as especificidades de um jogo de futebol, mas também sobre as memórias das sociedades, as histórias dos povos e a infinita complexidade das identidades culturais.
Em termos subjectivos, senti-me tanto mais chocado com semelhantes “análises” quanto guardo uma memória calorosa dos dez dias que passei em Sarajevo [símbolo da cidade], em Setembro de 1996, acompanhando o festival de cinema que a cidade conseguiu pôr de pé, poucos meses passados sobre o fim de sangrentos combates. Não que tal estadia me confira o estatuto de “especialista” seja do que for. Acontece apenas que, como cidadão do mundo, me parece lamentável que se possa fazer televisão, ou qualquer outra coisa a que se dê o nome de “informação”, como se as imagens (e os sons) da realidade circundante fossem uma espécie de inquestionável transparência sobre a vida das pessoas, de qualquer pessoa. Como se sentem os autores de “comentários” que, a pretexto de um jogo de futebol, se atrevem a arrumar séculos e séculos de convulsões históricas do continente europeu no moralismo de uma frase de poucos segundos? Já não lhes basta reduzir o futebol ao mais puro determinismo? Agora também nos vão dar lições sobre a Bósnia?

>>> Site oficial da Bósnia e Herzegovina.
>>> Site oficial de
Sarajevo.
>>> Bósnia e Herzegovina na
Wikipedia.