terça-feira, outubro 06, 2009

Ciclo Stockhausen: Dia 3


N.G.: O Ciclo Stockhausen, que decorreu entre sábado e segunda-feira na Gulbenkian, guardou para o último dia a muito esperada estreia mundial de Schönheit (Beleza), sexta parte do Ciclo Klang, encomendada pela Fundação Gulbenkian ao compositor em 2006. Trata-se de um trio para clarinete baixo (Suzanne Stephens), flauta (Kathinka Pasveer) e trompete (Marco Blaauw, na foto). Schönheit nasceu de uma reorganização da estrutura interna de todo o ciclo Klang em finais de 2006 (ou início de 2007), quando Stockhausen decidiu agrupar partes de todo o ciclo em sub-ciclos. A sexta hora tornou-se assim o primeiro de um conjunto de trios que se prolongam até à 12ª hora, baseados todos eles na 5ª hora (Harmonien) e usando o mesmo material. O número 5 é um elemento central em Schönheit: a peça tem cinco secções, cada qual com uma sequência de 25 notas (que é como quem diz cinco vezes cinco), que se organizam em arranjos diferentes a cada ciclo. Ao contrário de outras partes de Klang, não parece haver aqui uma mesma busca pelos limites do silêncio, procurando-se antes a descoberta de novos sentidos a cada nova arrumação nos ciclos que se sucedem, ciclicamente os três instrumentos encontrando um patamar comum, largados logo depois a nova demanda.
A segunda parte do concerto apresentou a que foi talvez a mais surpreendente (e marcante) de todas as obras do ciclo. Quase na obscuridade (salvo um foco de luz num palco negro, entretanto aberto em toda a sua profundidade), com uma rede de altifalantes arrumados em locais específicos na grelha da sala, uma erupção de sons tomou o espaço total do Grande Auditório. Com uma intenção geométrica na sua ordenação, os sons apresentam-se em 24 camadas, sucessivamente materializados nos pontos dos oito altifalantes. É uma música sem identidade corporal (apesar da fisicalidade das fontes de emissão que são os altifalantes e, também, a mesa de mistura que a projecta). Na escuridão, as pulsações de sons, ressonâncias, acontecimentos graves e estridentes formas agudas caminham à nossa volta como se dançando no ar, caminhando a ritmos diversos, sacudindo com as mais variadas intensidades o que, minutos antes, era apenas um pacato auditório.
Num aparente caos há contudo uma ordem clara entre as notas, tempos e registos. Contam-se 241 trajectórias que varrem o ar e ocupam, com nada mais que o som, todo o espaço da sala. A busca de uma expressão invisível para o som que Stockhausen se propôs abordar no ciclo Klang talvez tenha conhecido nestes Cosmic Pulses (Pulsações Cósmicas) - a 13ª hora do ciclo - a sua expressão mais evidente (não espanta que, reagrupadas em séries de três, as 24 camadas de som aqui sobrepostas tenham depois servido de base às partes 14 a 21 do ciclo).
As reacções na plateia mostravam como é diferente em cada um o contacto com o inesperado, uns optando por viver as sugestões de olhos fechados (aceitando a imaterialidade sugerida pelos sons), outros olhando em redor como que em busca de âncoras (físicas) de segurança perante o desconhecido. Esta é uma música que intriga, desperta, assombra e mesmo assusta. No final, a indiferença não morava ali.

Corpo, espírito, luz

J.L.: Na interessantíssima apresentação que precedeu o derradeiro concerto do Ciclo Stockhausen, Pedro Amaral sublinhou o facto de o compositor (nascido em 1928) ter pertencido à geração dos que viveram a adolescência durante a Segunda Guerra Mundial. Dito de outro modo: como Pierre Boulez (n. 1925) ou Luigi Nono (n. 1924), Stockhausen começou a partir de uma música também ela em escombros, experimentando todos os possíveis — ou ainda, como sugeriu Pedro Amaral, trabalhando a partir de uma crítica cartesiana das suas heranças, sobretudo as de Stravinsky e Schöenberg.
Daí, sem dúvida, esse gosto por uma interrogação radical de todos os géneros, modelos ou dispositivos, a ponto de criar uma peça como Cosmic Pulses, 13ª Hora do ciclo Klang (a última a ser apresentada). Tendendo para o puro espírito, isto é, literalmente dispensando os corpos, Cosmic Pulses consegue a proeza de reunir o aparato da música com a teatralidade do palco, a estranheza do happening e o sagrado do ritual, numa performance em que o único “suporte” visual é... a luz. Provavelmente, Stockhausen nunca quis criar um público, mas dar a ver (isto é, a ouvir) como o colectivo de espectadores se faz de uma acumulação de visões impossíveis de congregar numa leitura unívoca, ainda menos numa simbologia universal. Afinal de contas, com a sua música, reconhecemos que estamos sós — e essa solidão é libertadora.

Karlheinz Stockhausen
1991
FOTO Harald Fronzeck