segunda-feira, outubro 05, 2009

Elogio do cinema a preto e branco

PERSONA (1966), de Ingmar Bergman

Dois filmes portugueses — O Sangue e Entre os Dedos — chegaram aos circuitos do DVD (o primeiro depois de ter sido reposto em sala). Ou como importa rever e revalorizar as imagens a preto e branco — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 de Outubro), com o título 'Para (re)ver o mundo a preto e branco'.

Foi relançado, em cópia restaurada e em DVD, o primeiro filme de Pedro Costa, O Sangue (1989). Trata-se de um acontecimento raro — a reposição de um filme, para mais português — que inaugura um ciclo de redescoberta de um fascinante universo criativo, a desembocar na estreia de Ne Change Rien (5 de Novembro), o mais recente trabalho de Pedro Costa, centrado nas canções de Jeanne Balibar.
Por feliz coincidência, acaba de ser lançada a edição em DVD de Entre os Dedos, de Tiago Guedes e Frederico Serra, título também português que, embora através de outros pressupostos narrativos, nos confronta com uma questão presente nos filmes de Pedro Costa e, em boa verdade, em muito cinema contemporâneo avesso aos formatos de raiz televisiva. Ou seja: trata-se de reavaliar as fronteiras clássicas entre “ficção” e “documentário”, nomeadamente na abordagem do quotidiano mais rotineiro, todos os dias “ocupado” pelas telenovelas através de muitos clichés dramáticos, morais e sexuais.
A coincidência envolve outro aspecto que vale a pena sublinhar: ambos os filmes têm imagens a preto e branco, aliás tratadas com grande rigor e sofisticação pelos respectivos directores de fotografia (Martin Schäfer, em O Sangue; Paulo Ares, em Entre os Dedos). O facto é tanto mais significativo quanto o preto e branco no cinema passou a ser frequentemente interpretado como um sinal de “resistência”, precisamente aos padrões consumistas da televisão (há mesmo espectadores que, iludidos pelas formas promocionais da televisão e dos televisores, se dão ao trabalho de protestar para as relações públicas dos canais quando descobrem alguma emissão de material a preto e branco).
Escusado será lembrar que este preconceito contra o preto e branco só pode reforçar algumas formas brutais de ignorância. Seria como se defendêssemos a indiferença face aos romances de William Faulkner ou Eça de Queiroz porque os seus autores não escreveram em computador... De facto, uns bons 50 por cento da história do cinema foram produzidos em películas a preto e branco e só por triste insensibilidade histórica e estética se pode pensar que Nosferatu (1922), Casablanca (1942) ou Persona (1966) são filmes a ter em conta “apesar” de serem fotografados a preto e branco.
Os dois exemplos portugueses são tanto mais interessantes quanto, neles, o preto e branco passa por uma relação criativa com um certo espírito realista. É claro que a palavra “realismo”, hoje em dia apropriada (e, na prática, anulada) pelos clips de telejornal, não é simples. Acima de tudo, importa reconhecer que o realismo é sempre um fenómeno plural e multifacetado em que mesmo as proximidades históricas (por exemplo, nos anos 40, As Vinhas da Ira de John Ford e os filmes neo-realistas italianos) não podem ser compreendidas através de um padrão único e unívoco. Seja como for, de O Sangue a Entre os Dedos, aquilo que se desenha é uma paisagem, a um tempo temática e estética, em que a singularidade das histórias e a irredutibilidade das personagens apostam em devolver-nos algo do nosso mundo. Infelizmente, a maioria das reflexões (?) sobre cinema português passa ao lado de tais questões, preferindo acicatar conflitos entre “público” e “crítica”, filmes “difíceis” e filmes “comerciais”.