terça-feira, setembro 29, 2009

O "Big Brother" de Cavaco Silva

A declaração do Presidente da República ao país, sob o denominado "caso das escutas", gerou uma nova e reveladora maioria. De facto, para além de diferenças, nuances e sensibilidades, a maioria das reacções (políticas e mediáticas) ao discurso de Cavaco Silva aponta a especulação sem fundamento detectável, o culto de uma ambiguidade pouco salutar e o penoso prolongamento de uma situação que, de facto, podia e devia ter sido enfrentada na origem. E para além disso? Como viver — e, acima de tudo, como pensar — este imbróglio de desentendimentos e contradições a que chegámos?

1. Autoridade(s).
Para além disso, não se vislumbra que o imaginário político-televisivo em que vivemos tenha capacidade e vontade de lidar com a mais perturbante questão de fundo que esta crise arrasta. A saber: a progressiva erosão das figuras de autoridade. Bem sabemos que tal questão é quase sempre reduzida a um maniqueísmo primário. Simplificando, digamos que a vocação utópica das esquerdas recusa enfrentar os dramas da ordem simbólica da sociedade, enquanto a matriz conservadora das direitas reduz a crise de autoridade às formas de organização das forças policiais.

2. Que verdade?
De facto, este episódio de matizes ora trágicos, ora rocambolescos agrava ainda mais a fragilidade das figuras que, idealmente, deveriam existir como padrões de identificação social e, nalguns aspectos, projecção afectiva. Aliás, dito de outro modo: nesta sociedade em que o Big Brother triunfou como padrão dos olhares televisivos — fazendo-nos acreditar que onde está uma câmara está uma verdade que "não devemos" discutir —, não deixa de ser cruelmente irónico que as alegadas escutas em Belém se configurem como uma variação fantasmática do mais obsceno dos reality shows.

3. Símbolo(s).
O certo é que assistimos, assim, ao reforço de uma decadência simbólica a que, por princípio, quase todos os comentadores políticos (e também quase todos os políticos) são indiferentes. Vivemos mesmo numa sociedade em que, dos protagonistas políticos aos professores, todos os dias são metodicamente enfraquecidos os padrões mais legítimos — e também estruturalmente mais necessários — das mais diversas formas de autoridade. Em boa verdade, o seu papel foi ocupado por "alternativas". Quais? Os presidentes dos clubes de futebol ou os jurados de concursos de televisão. A esses sim, é conferido um reconhecimento tão abrangente quanto supostamente intocável. Certamente não por acaso, faz parte do anedotário ideológico português insultar todas as formas de intervenção crítica sobre as artes (com tradicional destaque para o domínio da arte mais popular: o cinema) — já era assim no tempo do Estado Novo, continua a ser assim em plena democracia.

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Na conjuntura actual, avizinham-se dias agitados em que se vão digladiar as culpas repartidas entre "Cavaco" e "Sócrates". Na prática, encarados de tal maneira, eles estão e estarão reduzidos a figurantes mais ou menos intermutáveis de uma mesma decomposição de valores. Por uma ou outra via, apenas se acentuará uma insinuação brutal: a de que não sabemos viver em colectivo. É essa descrença que nenhuma força política ousa enfrentar. Porquê? Porque a coragem de o fazer implicaria uma clara demarcação dos modos correntes de fazer a própria política.