terça-feira, setembro 01, 2009

Fantin-Latour: a luz e os rostos

HENRI FANTIN-LATOUR
A Leitura (1870)

Ainda é possível ver, na Fundação Gulbenkian, a exposição de Henri Fantin-Latour (até 6 de Setembro), sem dúvida um dos grandes acontecimentos artísticos do momento — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 de Agosto), com o título 'Memórias dos rostos de Henri Fantin-Latour'.

É bom saber que a exposição do pintor Henri Fantin-Latour (1836-1904), patente na Fundação Gulbenkian (até 6 de Setembro) já foi vista por mais de 25 mil pessoas. Vivemos, de facto, num mundo de despudorada promoção da fealdade: repare-se no alinhamento das chamadas revistas cor-de-rosa nas bancas de jornais e observe-se como, todos os dias, os nossos olhos são “forçados” a aceitar imagens que menosprezam toda e qualquer forma de beleza. Saber que há alguns milhares de cidadãos que quebram esse círculo de normalização dos olhares, eis o que, apesar de tudo, nos faz sentir que, face às imagens, continua a valer a pena criar linhas de fractura e propor caminhos de reflexão.
A obra de Fantin-Latour é tanto mais estimulante quanto há uma espécie de anacronismo histórico e estético que comanda a sua criação. De facto, ele foi um artista que não cumpriu a “obrigação” do seu próprio tempo, isto é, não foi um impressionista (vale a pena lembrar o lugar charneira que, nesse contexto, ocupa Le Déjeuner sur l’Herbe [imagem], de Édouard Manet, recusado pelo Salon de Paris em 1863). Muito marcado pela herança realista de Gustave Courbet (1819-1877), Fantin-Latour é alguém que pinta a sua época num clima de “intimidade” que, como refere Eduardo Lourenço no catálogo da exposição, é indissociável da relação com os livros e a leitura (um dos quadros tem, aliás, o título A Leitura). O mais espantoso é que isso não o encerra no seu próprio presente, antes ecoa para além de qualquer prisão cronológica. Cito Eduardo Lourenço: “A serenidade e a espécie de soberba indiferença com que Fantin-Latour olha para o seu presente, opaco como todos, que lhe serviu de inspiração, é uma forma de génio que ainda hoje nos é familiar”.
É interessante lembrar que o essencial da pintura de Fantin-Latour se desenvolve num período de acelerado desenvolvimento técnico, e também de crescente implantação social, da fotografia (recorde-se que a “primeira” imagem fotográfica, assinada por Nicéphore Niépce, data de 1826). Mais do que isso: a segunda metade do século XIX é também um tempo em que a arte fotográfica do retrato adquire um papel determinante na evolução das imagens e na transfiguração do seu valor público. E vale a pena referir que Nadar, o retratista emblemático da época, fotografou, entre muitos artistas, os pintores Courbet [foto] e Manet.
Aliás, se colocarmos lado a lado os retratos de Fantin-Latour e Nadar, podemos perceber que, para além de todos os problemas específicos de pintura e fotografia, ambos se confrontavam com uma mesma questão técnica e expressiva. A saber: como iluminar uma figura humana? Mais ainda: como abordar a relação entre os rostos e a luz?
O que mais impressiona quando redescobrimos os rostos pintados por Fantin-Latour é a sua plenitude dramática. Não são elementos de uma pose, mas sim matérias de uma narrativa. As memórias que contemplamos nestes quadros estão muito para além do reconhecimento fotográfico (e o termo adquire uma inevitável ironia). São memórias habitados por um impulso estético e anímico que nos faz esperar que os rostos se movam, as bocas falem e os corpos se desloquem. Se isso não ofender ninguém, eu diria que Fantin-Latour pinta a partir de um desejo de cinema.