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Há discursos que insistem em deitar areia para os olhos dos outros, invocando a noção de “televisão popular” para insultar tudo o que a ela, supostamente, se opõe. Para tais discursos, o alvo está sempre automaticamente definido: são os “intelectuais” e a “crítica” que resistem à afirmação do espectáculo “popular”. De facto, também aqui importa recusar qualquer ecumenismo piedoso, começando por lembrar que a história da televisão (e não só, hélas!) está muito longe de ter gerado padrões universais e inquestionáveis.
De que falamos, então, quando falamos de “popular”? Importa recordar algo de muito básico, algo que o cinismo reinante não tolera. A saber: o “popular” não é essa zona mítica, e miticamente transparente, em que todos os pontos de vista devem confluir e silenciar-se. A “guerra do gosto” de que falava Roland Barthes não pára à entrada do “popular”. Bem pelo contrário: vem lá de dentro e só pode ser extremada e radical. Há outra maneira de dizer isto: para alguns, o “popular” realiza-se nas telenovelas e no estilo de Fernando Mendes ou José Carlos Malato; para outros, passa por uma série como 30 Rock. Escusado será acrescentar que, em tal “guerra”, não há armistício à vista.
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Saudemos, por isso, a RTP2 por estar a passar tão admirável preciosidade. Mas não contornemos o absurdo em que vivemos: o país televisivo chegou ao ponto de ter uma série como 30 Rock, exemplo vivo de riquíssimos valores de espectáculo (tem 22 nomeações para os próximos Emmys), a passar como se fosse um perigosíssimo produto para “intelectuais” (segunda a sexta, às 23h30). Nos EUA, desgraçado país sem cultura popular, passa na NBC, às nove e meia da noite.