Em Inimigos Públicos, Michael Mann continua as suas experiências com as câmaras digitais; ao mesmo tempo, o seu trabalho revaloriza o labor específico dos actores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 de Agosto), com o título 'Johnny Depp a caminho do Oscar?'.
Já próximo do final de Inimigos Públicos, quando se começa a apertar a teia policial em torno de John Dillinger (Johnny Depp), há uma cena incrível: nela vemos, em pose casual de óculos escuros, o próprio Dillinger entrar no quartel-general da polícia, quase deserto (em boa verdade, estão a tentar encontrá-lo noutro local). Não se trata de uma acção premeditada, nem se transforma num qualquer efeito de surpresa. O que lhe confere uma indescritível estranheza é o facto de Dillinger, com evidente curiosidade, observar os artefactos de trabalho dos polícias e, em particular, nos painéis nas paredes, as muitas fotografias em que ele próprio é figura de destaque. Do ponto vista simbólico, reforça uma componente essencial da personagem, afinal coabitando com os mecanismos da sua própria lenda no imaginário social. Em termos narrativos, é uma cena que, por si só, define um espantoso cineasta: não se trata de fazer “avançar” a acção através de uma mera acumulação de informações, mas sim de reforçar um jogo de intensidades paradoxais que, em última instância, remete para a vida interior do próprio Dillinger.
Por aí podemos definir a singularidade do trabalho de Michael Mann. Ao reinvestir a personagem de Dillinger, é óbvio que Mann está consciente da riqueza estética da tradição do filme de gangsters, desde os tempos gloriosos do primeiro Scarface (1932 - cartaz) até às experiências modernas de Martin Scorsese. Ao mesmo tempo, não há nele nenhum revivalismo saudosista, nenhuma prática simplista da “citação”. E é, de facto, admirável que a tensão física que comanda as acções de Inimigos Públicos nunca exclua um sentido eminentemente psicológico de caracterização das personagens. Paradoxo suplementar: num cinema cada vez mais devedor da sofisticação das câmaras digitais, o que Inimigos Públicos celebra é o valor primitivo do actor como aquele através do qual passam todas as linhas de força da narrativa. Será preciso acrescentar que Johnny Depp deverá ter, no mínimo, uma nomeação para o Oscar?
Já próximo do final de Inimigos Públicos, quando se começa a apertar a teia policial em torno de John Dillinger (Johnny Depp), há uma cena incrível: nela vemos, em pose casual de óculos escuros, o próprio Dillinger entrar no quartel-general da polícia, quase deserto (em boa verdade, estão a tentar encontrá-lo noutro local). Não se trata de uma acção premeditada, nem se transforma num qualquer efeito de surpresa. O que lhe confere uma indescritível estranheza é o facto de Dillinger, com evidente curiosidade, observar os artefactos de trabalho dos polícias e, em particular, nos painéis nas paredes, as muitas fotografias em que ele próprio é figura de destaque. Do ponto vista simbólico, reforça uma componente essencial da personagem, afinal coabitando com os mecanismos da sua própria lenda no imaginário social. Em termos narrativos, é uma cena que, por si só, define um espantoso cineasta: não se trata de fazer “avançar” a acção através de uma mera acumulação de informações, mas sim de reforçar um jogo de intensidades paradoxais que, em última instância, remete para a vida interior do próprio Dillinger.
Por aí podemos definir a singularidade do trabalho de Michael Mann. Ao reinvestir a personagem de Dillinger, é óbvio que Mann está consciente da riqueza estética da tradição do filme de gangsters, desde os tempos gloriosos do primeiro Scarface (1932 - cartaz) até às experiências modernas de Martin Scorsese. Ao mesmo tempo, não há nele nenhum revivalismo saudosista, nenhuma prática simplista da “citação”. E é, de facto, admirável que a tensão física que comanda as acções de Inimigos Públicos nunca exclua um sentido eminentemente psicológico de caracterização das personagens. Paradoxo suplementar: num cinema cada vez mais devedor da sofisticação das câmaras digitais, o que Inimigos Públicos celebra é o valor primitivo do actor como aquele através do qual passam todas as linhas de força da narrativa. Será preciso acrescentar que Johnny Depp deverá ter, no mínimo, uma nomeação para o Oscar?