segunda-feira, julho 27, 2009

Salazar e Marx: da vida dos fantasmas

Subitamente, a classe política e as intervenções políticas surgem associadas a muitas notícias sobre a blogosfera. Não que, melhor ou pior, os discursos político-partidários não fizessem já parte do dia a dia dos blogs. O certo é que, ao longo da última semana, três dos principais partidos políticos surgiram directamente conotados com outros tantos novos blogs. Vale a pena conhecê-los. São eles:

>>> Simplex (PS)
>>> Jamais (PSD)
>>> Rua Direita (CDS)


Há de tudo um pouco: desde os discursos articulados que tentam pensar alguma coisa (aliás, a carência é tanta que importa ser mais conciso: que tentam pensar) até aos posts que se esgotam em diatribes mais ou menos fulanizadas, supostamente plenas de humor, prolongando a lógica da "cultura-twitter" em que a possível consistência das ideias é trocada pelo enunciado voluntariamente constrangindo à apoteose de um soundbyte televisivo.
É difícil alimentar muitas expectativas. Em boa verdade, esta agitação bloguista tem como meta próxima (porventura única) os próximos actos eleitorais e não surpreenderá que, pelo menos na maior parte dos casos, Simplex, Jamais e Rua Direita sirvam para prolongar os discursos (também eles twittados) com que os dirigentes partidários encaixam no espaço televisivo. Aliás, será curioso observar até que ponto se abrirão espaços/posts para pensar três questões de filosofia política que são sistematicamente recalcadas por todos os partidos, incluindo aqueles (PCP e Bloco de Esquerda) não representados nesta expansão da blogosfera. A saber:
1) - precisamente o papel do espaço televisivo na organização política da sociedade e, mais do que isso, na configuração do próprio espaço de intervenção política;
2) - o significado de uma abstenção que, na prática, se traduz no alheamento das urnas de mais de metade da população portuguesa com direito a voto;
3) - enfim, a possibilidade de, sem desvalorizar os fundamentos do sistema democrático (aliás, tentando reforçá-lo) pensar a dinâmica política para além da dicotomia tradicional "direita/esquerda" — tal possibilidade constitui uma das heranças utópicas do 25 de Abril que, genericamente, o espectro partidário prefere recalcar, insistindo em sustentar tal dicotomia em muitas áreas do pensamento e da acção onde o cidadão comum já não consegue reconhecer a sua pertinência.

* * * * *

De que falam, então, os bloguistas político-partidários quando falam de política?
A proliferação de posts evidencia uma vitalidade e uma disponibilidade para o debate de ideias que importa registar: mesmo que toda esta movimentação se venha a esgotar numa estratégia apenas eleitoralista, convenhamos que já há algum tempo não víamos (isto é, líamos) tanta gente — e tanta gente com ideias — a tentar contrariar a degradação da blogosfera.
Ao mesmo tempo, há sinais paradoxais que importa reter, sobretudo quando são sintomas de recalcamentos, não específicos destes blogs ou dos seus autores, mas do espaço do pensamento político.
Assim, por exemplo, no Simplex, João Galamba escreveu um post intitulado 'Ironias de um nome', visando precisamente uma intervenção num dos outros blogs: "Não acham irónico que o primeiro post de um blog chamado Jamais tenha sido escrito por alguém conhecido por elogiar Salazar" [através de um link, esse alguém era identificado como João Gonçalves, autor de O Portugal dos Pequeninos]. Era um banal sarcasmo que, ao evocar o fantasma de Salazar, atraía equívocos que o próprio João Galamba veio reconhecer, escrevendo um novo post de 'Esclarecimento', com desculpas dirigidas ao colectivo Jamais. Curiosamente, no blog Jamais, André Abrantes Amaral acrescentou um 'Ironias à parte' que, para além de não querer empolar a questão (o que, convenhamos, é raro neste tipo de peripécias na Net), incluía o detalhe de responder a um fantasma com outro: "Não te preocupes, João. Também há alguns admiradores de Marx no Simplex, o que não deixa de ser irónico, tantas misérias depois."
Que dizer deste confronto en passant? Como compreender — aliás, antes disso, como definir — esta perversa cumplicidade discursiva em que ambos os intervenientes tentam valorizar aquilo que, logo a seguir (por medo?), procuram ocultar? Aqui vai "o-meu-Salazar-contra-o-teu-Marx". Vê se se consegues "defender-o-meu-Marx-com-o-teu-Salazar".
De facto, estes nomes não são banais. Ou seja: estão no lugar de alguma coisa — estão sempre. No lugar de quê?
Se o país político não sabe responder a esta pergunta, não serei eu a julgar-me detentor de uma resposta segura ou apaziguadora, para mais num espaço sempre limitado como este. Em todo o caso, vale a pena deixar duas pistas curiosas e, quero crer, não lineares:
A) - A palavra "Salazar" permanece violentamente incrustada em todos os domínios do tecido social português — e, muito seguramente, no nosso imaginário nacional —, de tal modo que a sua simples aplicação tende a atrair uma dicotomia "pró-e-contra", cega e cegante, que se tornou linguagem dominante. Afinal de contas, a RTP promoveu um concurso (?) sustentado por tal dicotomia.
B) - O nome "Marx" persiste como uma presença de assombramento — espectral, hélas! — em toda a dinâmica política europeia. E de tal modo assim é que o seu pensamento — em grande parte, um pensamento das componentes espectrais das "coisas" e das "relações" — é sistematicamente reduzido aos crimes dos que colocaram a imagem de Marx (ainda um espectro) nas suas imagens.

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Na pior das hipóteses — mas essa é sempre a via mais comum da blogosfera —, tudo isso redundaria num conflito pueril: "afinal, és salazarista ou és marxista?" Fica, de qualquer modo, em aberto a miragem de um espaço de reflexão e representação, isto é, um espaço estético — doloroso, sem dúvida — em que pudéssemos discutir o que significa: Salazar em nós, Marx em nós.
Nenhuma descoberta neste formulação, entenda-se. Em 1977, Hans-Jürgen Syberberg [foto] fez um filme chamado Hitler - Um Filme da Alemanha (não é uma redundância), ousando lidar, não apenas com os crimes nazis, mas também com as monstruosidades e os traumas da história alemã e europeia, a ponto de dizer que se tratava de um filme sobre "Hitler em nós". Por vezes, na sua versão inglesa, o filme é identificado como Our Hitler.