"Network" (1976), de Sidney Lumet
O caso PT/TVI veio prolongar a saga de temas e tabus em torno da televisão que (não) se faz em Portugal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 de Junho), com o título 'Os tabus em torno de José Eduardo Moniz'.
Podemos admitir que, apesar da competência e seriedade das pessoas que administram a PT, essas mesmas pessoas foram subitamente assaltadas pelo vírus da ingenuidade e não pensaram que qualquer movimento financeiro em direcção à TVI teria imediatas e inevitáveis conotações políticas. Podemos até supor que José Sócrates, alvo automático de uma grande parte da comunicação social (entrará para a história como a “nova saga Santana Lopes”, agora com outro actor), tenha cometido o pecado supremo da arrogância distraída, encarando a entrada da PT na TVI como um simples dossier esquecido em cima da sua secretária.
Podemos especular infinitamente sobre tudo isso, transformando o país num imenso jogo de video, frenético e surreal, em que disparamos automaticamente contra qualquer rosto que apareça a espreitar à esquina de uma rua ou numa janela entreaberta. É o que está a acontecer, aliás, fazendo triunfar esse glorioso argumento de “produção de verdade” que é o: “Eu acho que...”.
Não, não estou a sugerir que se apague o ocorrido (seja como for que tenha ocorrido). Sou mesmo dos que pensam que, em qualquer caso, a simples aproximação da PT à TVI é uma atitude discutível do ponto de vista económico e pueril no plano da acção política. O que, mais uma vez, me surpreende e desconcerta é que a actualidade da televisão entre, assim, nas nossas casas sem que, nem por um milionésimo instante, algum dos nossos comentadores enuncie uma dúvida metódica. A saber: quando se discutem as dinâmicas económico-financeiras da televisão, não será também importante questionar que televisão se faz em Portugal e que valores nela se produzem e promovem?
Atrevo-me a supor que José Eduardo Moniz olhará para toda esta agitação com uma ironia eivada de prazer. Nas muitas crises do nosso país, ele é o protótipo do homem feliz e realizado (e merece que o respeitemos enquanto tal). De facto, a saturação económica da vida política, social e, agora, mediática, tem como consequência directa uma ferida simbólica que, nas últimas décadas, apenas gangrenou: discutir o que a televisão é e aquilo que a televisão faz ao país são dois imensos tabus.
Porquê esses tabus? Porque se resiste à discussão da fulanização populista do jornalismo da TVI, à sua celebração regular da reality TV (desde os tempos do sinistro Big Brother), enfim, ao triunfo imposto da telenovela como único padrão nacional de ficção? Por uma razão muito simples, quotidianamente transparente: tais princípios contaminaram muitas áreas da televisão que se faz em todos os canais generalistas.
Lembro-me do filme americano Network, com Peter Finch, Faye Dunaway, William Holden e Robert Duvall, realizado por Sidney Lumet. A partir de um argumento do genial Paddy Chayefsky, nele se mostrava, de forma muito simples e directa, que a televisão estava a evoluir através da inquietante conjugação da fulanização grosseira das vedetas e de um processo de esvaziamento mental que sobrepunha a histeria do “espectáculo” a qualquer visão serena, ponderada e construtiva das relações humanas. Vale a pena sublinhar que se trata de um filme de 1976. Não que a televisão dos EUA tenha passado a ser o paraíso na Terra. Só que a discussão dos valores televisivos era algo que, há mais de 30 anos, já integrava o imaginário popular.