quinta-feira, junho 18, 2009

Os novos mártires da televisão

1. Ontem, dia 17 de Junho, às 23h11, no programa Negócios da Semana (SIC Notícias), Paulo Rangel considerava a entrevista com José Sócrates (transmitida pouco antes, na SIC e na SIC Notícias) como uma espécie de "novas Conversas em Família", sinal daquilo que chamou "neo-marcelismo". Se avaliarmos a sugestão no plano da análise política, o mínimo que se pode dizer é que reflecte a desastrosa irresponsabilidade de quem favorece uma grosseira confusão de contextos e regimes. Como intervenção no espaço televisivo, comete o erro (certamente involuntário, não tenho dúvidas) de favorecer insinuações pouco agradáveis sobre os próprios canais que deram voz ao primeiro-ministro.

2. Pergunta-se, por isso: num país em que, por vezes, um "espirro" de um político é tratado como se fosse o enunciar de um programa quinquenal, porque é que ninguém diz nada sobre a monumental gaffe de Paulo Rangel? A resposta é simples: em termos televisivos, há uma conta-corrente dos políticos que impõe uma visão maniqueísta do seu comportamento — e, neste momento, Paulo Rangel está em alta, quer dizer, as coisas inteligentes e as coisas sem sentido que possa dizer serão recebidas com a mesma olímpica indiferença.

3. Quem está em baixa, como é óbvio, é José Sócrates. E de uma maneira que pouco ou nada tem a ver com o seu trabalho. Repare-se: a governação de Sócrates é, por certo, um manancial de temas que só pode suscitar diferenças e divergências — e é bom que possamos ter uma vida social e mediática em que os nossos governantes sejam objecto de um escrutínio sério e regular. Mas o que está a acontecer é de outra natureza: tem a ver com o facto de, em termos globais, a informação televisiva se ter passado a conceber, não como uma espectadora dos confrontos, mas como uma indutora de conflitos.

4. Num certo sentido, hoje em dia, a informação televisiva portuguesa é sempre de oposição — e é-o, repare-se, seja quem for que esteja no governo. Seria, por certo, criativo e estimulante que tívessemos uma informação em que o gosto da verdade (gosto complexo e muito exigente) não excluísse a paixão das causas. Mas não: as televisões só parecem seguras da sua existência se puderem, todos os dias, sacrificar alguém no seu altar de autoproclamada objectividade. E há muito que encontraram o intérprete ideal dos seus martírios: o primeiro-ministro.

5. Entenda-se: não este primeiro-ministro, mas o primeiro-ministro como símbolo mais exposto da vida pública. Claro que sociedades alimentadas por este tipo de tensão mediática são dadas ao rápido apagamento das suas próprias memórias. Por isso, vale a pena lembrar: na prática, está a acontecer com José Sócrates o mesmo que se verificou com Santana Lopes. Sabe Deus que terá havido muitas e legítimas razões para discutir a sua governação (como as há para contestar Sócrates). Mas nada disso teve a ver com o processo de destruição simbólica a que Santana Lopes foi metodicamente sujeito enquanto primeiro-ministro — do ponto de vista dominante em televisão, um bom mártir não se pode largar... até ele desaparecer.

6. Num país realmente atento aos problemas da sua vida democrática, a alusão brincalhona (?) de Paulo Rangel ao "neo-marcelismo" teria que ser, no mínimo, confrontada com alguns dados históricos. Lembro três, em nada ligeiros, essenciais para lidarmos com o marcelismo propriamente dito:
a) - a existência de uma censura oficial;
b) - o aprisionamento de muitos opositores do governo;
c) - a manutenção da guerra colonial.
Não que eu queira favorecer o retrato simplista desse tempo, retrato que nos descreve a todos como macacos enjaulados pela polícia política (se outras razões não houvesse, atrevo-me a evocar o facto de pertencer a uma geração que viveu a sua adolescência nessa época, o que me leva a não aceitar que os esquematismos políticos — de esquerda e de direita — roubem memórias de alegria, dor e paixão que a cada um pertencem). Mas é incrível que alguém com responsabilidades políticas numa democracia favoreça, assim, a obscena banalização do próprio tempo em que vive.

7. Perguntarão os mais obsessivos: e se Sócrates fosse culpado de tantas fraquezas — ou mesmo crimes — de que é acusado? Pois bem, nesse caso seria bom que a nossa democracia soubesse repor, de todas as formas necessárias, os valores que a fundamentam e conduzem. Apesar disso, ou melhor, precisamente por causa disso, importa continuar a discutir os valores de uma ideologia televisiva que nos empurra para um clubismo "político" que faz de nós seres humanos que privilegiam o conflito, a insinuação e, em última instância, o menosprezo pelo nosso semelhante. É verdade: somos um país tão católico e diz-se tão pouco sobre esta quotidiana degradação da dimensão humana do outro.