
Decididamente, o Festival de Cannes não dá descanso aos que insistem em problematizar o cinema português como uma oposição automática, maniqueísta e incontornável entre filmes “comerciais” (supostamente vistos por multidões passivas e acolhedoras) e filmes “artísticos” (apenas sancionados por alguns críticos pretensiosos, naturalmente alheados da vontade do povo).

Seria a altura de os principais actores da cena cinematográfica portuguesa (incluindo a maioria das personalidades políticas, de governo e oposição, quase sempre indiferentes aos filmes e ao respectivo valor cultural e simbólico) assumirem uma verdade muito simples, mas que memórias de muitas décadas nos ensinam ser objecto de sistemático recalcamento. Que verdade? A de que nos enredamos todos num beco sem saída se continuarmos a promover a noção triunfalista (?) segundo a qual o cinema português se deve definir por critérios lineares, únivocos e unilaterais de rentabilidade económica. Se nem Hollywood se rege por princípios tão simplistas, porque haveremos de ser nós a fazê-lo?
Bem sei que a mera formulação destas dúvidas atrai sempre um insulto grosseiro que se propala como se fosse uma evidência incontestável. Que insulto é esse? O de que alguns perigosos intelectuais (críticos sobretudo, como é óbvio) defenderiam um cinema português apenas para passar nos festivais estrangeiros... É certo que nunca ninguém formulou o problema desse modo tão estúpido. Mas convenhamos que, dada a conjuntura, apetece forçar a ironia: se for para ganhar Palmas de Ouro, por que não?

Fica uma certeza: a de que, mais do que nunca, a renovação de nomes e a criação de condições para novas experiências são vectores fundamentais de um cinema que saiba viver (e pensar-se) para além da tristeza normativa das ficções televisivas e também da sua perspectiva redutora sobre a vida comercial do cinema. E um desafio: tendo em conta a pequenez do mercado interno, importa também pensar seriamente o que pode significar (desde logo, em termos financeiros) uma política activa de difusão internacional do cinema português. Para alguns não será muito cómodo reconhecê-lo mas, nas últimas décadas, o cineasta de referência para essa difusão em muitos mercados estrangeiros dá pelo nome de Manoel de Oliveira.