domingo, março 01, 2009

Memória transfigurada

Num mesmo disco dois tempos em diálogo, criando uma música de puro assombro. Falamos de Being Dufay, o espantoso novo disco do compositor Ambrose Field, no qual se cruza a memória da música vocal do final da Idade Média com uma série de sugestões de ambientes, texturas e cenários, definidas por tecnologia electrónica. No centro da construção musical encontramos uma série de canções e motetes de Guillaume Dufay (1397-1474), um dos mais notáveis compositores do seu tempo, autor não apenas de importante obra sacra, mas também de canções profanas, em algumas destas últimas cantando o amor e a sensualidade. Na voz do ecléctico tenor John Potter (sobretudo conhecido pela sua ligação ao Hilliard Ensemble e por recentes discos com o Dowland Project), ecos de tempos remotos são recontextualizados num espaço onde a voz acaba envolta entre texturas, ecos, manipulações áudio. Transfigurada, a memória da música de Dufay é transportada para um outro tempo e lugar, brotando desta nova música um sentido de desafio que intriga, envolve e finalmente arrebata. Há uma qualidade cinematográfica nesta música que, pela sua concepção cénica, sugere uma tridimensionalidade que, em performance ao vivo, é materializada em projecções (de filmes assinados por Michael Lynch). As citações a Dufay são, como o próprio Ambrose Field explica, “apresentadas de forma inalterada”, servindo de ponto de referência face ao que depois se apresenta como “novo”. Apesar das diferenças conceptuais, e até mesmo das linguagens electrónicas usadas pelo compositor, podemos entender Being Dufay como um disco companheiro do recentemente editado Versailles Sessions, de Murcof, onde se estabeleciam pontes afins entre memórias musicais e vivenciais dos dias da corte de Luis XIV e a música electrónica neste início de século.

Ambrose Field tem dedicado muito do seu trabalho à criação de uma música que combina a voz humana com ferramentas digitais. É uma presença regular em acções e emissões da BBC, e já conta com alguns prémios no seu currículo. Apesar de usar, como compositor, materiais do nosso tempo, é um confesso admirador de heranças musicais com vários séculos de história. Como explica no booklet que acompanha o seu novo disco, Being Dufay “é um espaço onde o muito antigo pode co-existir com alguns dos mais recentes desenvolvimentos musicais”. Na imagem vemos o compositor (à direita), junto do tenor John Potter.