
Por mais desconcertante que possa parecer, A Cor do Dinheiro (1986), o filme de Martin Scorsese que deu a Paul Newman o seu Oscar de melhor actor, não se encontrava no mercado de DVD. O seu recente lançamento veio eliminar uma lacuna na divulgação da filmografia de Scorsese, permitindo-nos (re)descobrir um momento de transição carregado de simbolismo.
A Cor do Dinheiro constrói-se a partir de uma relação de aprendizagem, mestre/discípulo, cujas matrizes estão, em grande parte no western clássico. Com importantes diferenças de contexto, como é óbvio. Assim, Newman surge como Eddie Felson, lenda do jogo do bilhar que encontra na personagem de Vincent Lauria, o jovem prodígio interpretado por Tom Cruise, um desafio e, em última instância, um sucessor.

Pelas peripécias de A Cor do Dinheiro perpassa o tema da afirmação individual e, mais do que isso, da redenção, nuclear na obra de Scorsese. E não é uma das menores maravilhas do filme que a relação de cumplicidade e conflito que se estabelece entre os dois jogadores acabe por funcionar também como uma belíssima passagem de testemunho entre dois actores capazes de simbolizar duas gerações de Hollywood.
Escusado será sublinhar que, em 1986, Newman era um nome mais que consagrado do cinema americano. Nascido em 1925, produto da geração do Actors Studio a que também pertenciam Marlon Brando ou James Dean, a sua carreira desenvolvera-se de modo fulgurante a partir de Gata em Telhado de Zinco Quente (1958), precisamente o filme que lhe deu a sua primeira nomeação para o Óscar. Quanto a Cruise, embora tendo já dado mostras do seu talento em Taps (1981) ou Negócio Arriscado (1983), era ainda visto sobretudo como o “galã” do sucesso Top Gun (também de 1986). Nesta perspectiva, A Cor do Dinheiro surgiu como o primeiro grande desafio da sua carreira, confrontando-o com o peso e a autoridade de um “monstro sagrado” como Newman, para mais sob a direcção de Scorsese (que, na altura, convém não esquecer, já assinara Mean Streets, Taxi Driver e Touro Enraivecido).
O mínimo que se pode dizer é que se trata de uma afirmação de talento que encontra um eco ambíguo, ligeiramente perverso, na própria dinâmica interna do filme. Assim, dir-se-ia que, face à exuberância da personagem de Vincent, Newman compõe o seu Eddie Felson num misto de ironia e contemplação, em última análise contribuindo decisivamente para a excelência do trabalho de Cruise. Dois anos depois, Cruise teria outro desafio invulgar em Rain Man, neste caso frente a frente com Dustin Hoffman. É caso para dizer: o resto pertence à história.