Pode a capa de um disco sugerir o que vai lá por dentro? Pode, sim. E a foto escolhida para ser o “rosto” de The Airing Of Grievances, dos Titus Andronicus, não podia ter sido melhor escolha. O amontoado de instrumentos (sobretudo revelando guitarras, pedais e amplificadores), a evidente falta de espaço, uma certa arrumação na desarrumação... Este é o mundo físco em volta do qual nascem as canções de um dos mais entusiasmantes discos rock’n’roll dos últimos tempos, com paralelo recente apenas em Nouns, dos No Age. Contudo, o ambiente em volta destes músicos é bem distinto do clima californiano e solarengo que ilumina essa dupla DIY de Los Angeles. O bilhete de identidade dos elementos deste quinteto com nome tirado a uma peça de Shakespeare é revelador: Glen Rock, New Jersey. Assim se explica que, apesar das aspirações de quem sonha o mundo (aparentemente leu Albert Camus e Cormac McCarthy e reflecte sobre a pintura de Bruegel), o disco traduza a frustração de quem se confronta com uma vida real algo diferente. Desarrumada, sonora, suja, a música dos Titus Andronicus é herdeira do punk na energia, mas traduz objectivos que não se esgotam na descarga imediata. Podendo, em fim de noite, denunciar algumas cervejas a mais... A voz lembra um Conor Oberst em gritaria visceral. Pela alma melodista, que se escuta entre a electricidade e distorção, correm marcas americanas, com Springsteen como referência mais evidente. Mais implosiva que expansiva, esta é uma música que já lhes valeu o rótulo de “existencialismo suburbano”. Mais rótulo, menos rótulo, The Airing Of Grievances é um disco que, sem querer concorrer ao campeonato da revolução que se segue, traduz ecos de uma identidade punk que conhece nova expressão a cada geração que entra em cena. Directa, imperfeita, intensa. E que teria perdido todo o sentido se, da edição original do álbum em Abril do ano passado pela pequena independente Troublesome Unlimited para a presente reedição via XL Recordings, se tivesse caído na tentação de “acertar” a mistura e produção.
Titus Andronicus
“The Airing Of Grievances”
XL Recordings / Popstock
4 / 5
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Por todas as razões era um dos discos mais aguardados de 2009. Por um lado anunciava um eventual renascimento criativo dos U2. Por outro carrega o fardo de ser uma das raras tábuas de salvação de uma indústria em cada vez mais evidente clima de desespero... Get On Your Boots, o single cartão-de-visita, era já interessante sugestão de que este não seria um disco pronto a mastigar. É verdade que No Line On The Horizon não é um “novo” Achtung Baby, mas traduz a vontade de fugir aos medianos episódios de manutenção que se revelaram nos dois últimos discos, que pouco mais fizeram que o cimentar do estatuto de enorme popularidade global da banda irlandesa. O alinhamento reduz os habituais hinos de estádio a mínimos olímpicos (mesmo assim lá estão Magnificent e Stand Up Comedy para fazer a festa) e revela-se essencialmente feito de canções menos imediatas, texturalmente mais elaboradas, em muitas sentindo-se evidente presença de Brian Eno, não apenas como exímio técnico de estúdio. Na verdade, tanto ele como Danny Lanois (como agora surge na ficha técnica) co-assinam alguns dos temas. Nota-se. Muito do álbum vive de revisitações de ideias e soluções de produção que marcaram outras épocas na vida dos U2. Bowie tomou opção semelhante em hours... (revisitando 1970) e Heathen (citando 1977), e não foi por isso que desses discos fez casos menores. É verdade que, durante a gravação do disco, os U2 não resistiram ao silêncio e talvez tenham falado demais. Sugeriram temperos marroquinos, trance... Houve quem esperasse revolução... Já a fizeram, à sua maneira, mas em 1991. E uma outra, seria possível? Não parece... Essa é tarefa hoje nas mãos de uns Animal Collective ou TV On The Radio. E aos 30 anos de carreira, o evitar do “mais do mesmo”, tipo pastilha-elástica, face a modelos menores (como o foram os discos de 2000 e 2004) e o não repetir do espalhafato “vamos lá surpreender” de Pop é já argumento em favor dos U2. E a boa colecção de canções que o disco traz também ajuda. Na verdade, feitas as contas, este é o melhor disco dos U2 em mais de dez anos!
U2
“No Line On The Horizon”
Island / Universal
4 / 5
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Os dois primeiros meses de 2009 parecem estar a dar continuidade a um clima que fez do ano passado uma das melhores colheitas na música portuguesa dos últimos anos. A mais recente boa notícia chega via Aquaparque, um duo com primeiro episódio da sua história em Santo Tirso, onde se conheceram os seus elementos André Abel (também nos Tropa Macaca) e Pedro Magina (hoje engenheiro de som no Porto). É Isso Aí é um disco em tudo diferente ao que o panorama indie local tem revelado, contudo mostrando afinidades várias com muitos momentos da história pop/rock nacional. Se na construção formal de um conjunto de temas - que ora exploram com curiosidade ora desconstroem a canção - sentimos afinidades práticas com demandas que se reflectiram recentemente na música de uns High Places, Animal Collective e, sobretudo, Panda Bear, na sua alma e tutano correm antes marcas de identidade que aceitam uma série de referências locais, nomeadamente os Ocaso Épico, Pop Dell’Arte, os GNR (dos dias de Independança) e, num plano mais emotivo que pragmático, a memória de discos de António Variações e dos Heróis do Mar. É Isso Aí é, parece, mais que uma obra concluída, uma entusiasmante etapa num processo de busca que, para já, experimenta um sentido libertador de curiosidade, que tanto se espelha na música como nas palavras ou até mesmo na capa do disco. Entre canções e não canções, palavras informais e ensaios poéticos, construções e variações, avanços e recuos, o álbum propõe um mundo que sabe bem descobrir aos poucos. Pela pop, minimalismo, dub, rock cósmico ou o prazer da surpresa, não faltam aqui portas de entrada. Sem dúvida, uma das melhores surpresas da música portuguesa nos últimos tempos.
Aquaparque
“É Isso Aí”
Aquaboogie/Flur
4 / 5
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De Brooklyn, em Nova Iorque, continuam a chegar novidades. E aos poucos muitas delas reflectem tendências, partilha de ideias e colaborações. É o caso da dupla feminina Telepathe, a soma dos talentos de Busy Ganges e Melissa Livaudais, num disco gravado e produzido por Dave Sitek, dos TV On The Radio. Seguindo as sugestões de primeiras (e promissoras) pistas reveladas ainda em 2008, o álbum confirma uma opção pela exploração de uma linguagem electrónica sombria, tensa, rugosa, em tudo distinta dos cenários de fim de noite de uns Chromatics. Porque as “sombras” aqui são outras... Uma contenção minimalista coordena a composição, alargando-se depois os horizontes no trabalho vocal e na sugestão de texturas e cenários que, como em projectos locais como os Yeasayer ou Gang Gang Dance, reflectem uma noção de partilha e assimilação de tendências e acontecimentos que parecem hoje habitar aquele (criativamente) agitado bairro nova iorquino. Apesar de oacsionais surtos de contida luminosidade pop (curiosamente o mais intenso dos quais em Drugged), Dance Mother é um disco assombrado pelo espaço. Sugere vivências T0 ou T1, janela aberta, à noite, ruas de periferia pouco movimentadas... Não quer contar as histórias da cidade, mas antes sugerir os climas que as moldam. A música recorre a teclados que transpiram memórias, mas não convoca nostalgias. Pelo contrário, usa os sons com uma consciência de reflexo do presente. Mais cerebral que corporal, Dance Mother é um disco tenso e intenso. Quase lembra uns My Bloody Valentine. Mas com teclas... Sem necessidade de olhar para o chão, desviando talvez o olhar em frente. Mas, no que parece ser uma escuridão para já incontornável, não conseguindo ver muito mais adiante...
Telepathe
“Dance Mother”
V2 / Popstock
3 / 5
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E era uma vez uma história que começou em Lisboa. Foi nos camarins de um festival que Fabrizio Moretti (baterista dos Strokes) conheceu o brasileiro Rodrigo Amarante (voz e guitarra dos Los Hermanos). Voltaram a encontrar-se em Los Angeles, durante a gravação do último álbum de Devendra Banhart, no qual colaboraram... Conversa puxa conversa, e a ideia de fazer música ganhou outra solidez. Através de amigos conheceram Binki Shapiro, a peça final na pequena banda que, então, se instalou numa casa na zona de Echo Park (ainda em Los Angeles). Para nome escolheram então Little Joy, nada mais que um bar nas imediações da sua nova casa... O clima tranquilo e despreocupado que assistiu ao nascimento da ideia conseguiu, meses depos, chegar intacto a um disco que traduz o prazer preguiçoso de fins de tarde ao ar livre, guitarra na mão e um copo ao lado. Sem pretensões de ser mais que o que é, sem desejos ocultos, Little Joy propõe uma colecção de canções que cruzam referências clássicas do melodismo pop de meados de 60, a elegância da escrita de alguns cantautores de inícios de 70, temperando os sabores com ecos quentes, da bossa nova às caraíbas. Uns valentes furos acima do segundo álbum a solo de Albert Hammond Jr e claramente mais inventivo que o desapontante disco que Nikolai Fraiture lançou como Nickel Eye, Little Joy é a melhor surpresa que chega da “família” Strokes des há algum tempo a esta parte.
Little Joy
“Little Joy”
Rough Trade / Popstock
3 / 5
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Também esta semana:
Arvo Pärt, Brighton Port Autority, Neko Case, Madlib, House Of Love (live), Bozoo Bajou, Howling Bells, Loney Dear, The Prodigy
Brevemente:
9 de Março: Vetiver, Annie Lennox, Nick Lowe, Nasa, Walker Brothers (best of), Casiotone for the Painfully Alone, Razorlight, White Lies (ed Nacional)
16 de Março: Bonnie Prince Billy, Pete Doherty, Siouxsie & The Banshees (reedições), Susumo Yokota, Black Lips
23 de Março: Pet Shop Boys, Phoenix, Royksopp, The Rakes, The Decemberists, Pearl Jam (reedição), Indigo Girls, Dan Deacon, Pete Doherty
Março: Grizzly Bear, Xutos & Pontapés, The Prodigy, Mexican Institute of Sound, Mirah, William Orbit, PJ Harvey + John Parish, Arcade Fire (DVD), MSTRKRFT, Frank Black, VV Brown, Bell Orchestre, Fever Ray, Leonard Cohen (live), Whitest Boy Alive, Gomez, Peter, Bjorn + John
Abril: Metric, Papercuts, Yeah Yeah Yeahs, Depeche Mode, Annie, Tortoise, Art Brut, Vitalic, Bill Callahan, Bat For Lashes