sexta-feira, março 06, 2009

Amores de perdição, séc. XXI

No filme A Corte do Norte, de João Botelho, Ana Moreira interpreta várias personagens recolhidas e, por assim dizer, resgatadas do livro homónimo de Agustina Bessa-Luís — entre elas, essa herdeira magoada das grandes personagens trágicas que é Emília de Sousa ("a maior actriz que o teatro português conheceu nos finais do séc. XIX, que abandonou por uns anos a carreira para se casar com o rico madeirense Gaspar de Barros e transformar-se na Baronesa Madalena do Mar"). São figuras vivas, mas espectrais, sinais de vida e máscaras de morte, que reavivam o tema dos amores de perdição, tão portuguesmente literário e, hélas!, cinematográfico.
Botelho faz um filme de metódico e delicado amor pela filigrana das palavras, em tudo o que elas têm de invocação de um mundo alternativo ("ouçam a minha voz") que só no cinema, e pelo cinema, pode encontrar carne e desmesura, coisas concretas e vertigens abstractas. É um filme que apetece revisitar, como uma casa que nos acolhe nos seus recantos e segredos.
E é também um filme que não poderá deixar de ser lido como um objecto de resistência na actual conjuntura cinematográfica portuguesa. Resistência a quê? Ao triunfo institucional da telenovela disfarçada de cinema "histórico" e/ou "escandaloso". Mesmo nas suas vulnerabilidades — ou através delas —, A Corte do Norte convoca-nos para a existência material das imagens e dos sons, para o seu prazer sem nome, para a sua condição de celebração única e insubstituível. Digamos, para já, que isso é um bem precioso.

>>> A CORTE DO NORTE, de João Botelho; com Ana Moreira, Ricardo Aibéo, Rogério Samora, Laura Soveral, João Ricardo — estreia: 19 de Março.