Afinal, como nasce um par? Que conta é essa que leva a somar 1 + 1? Revolutionary Road, de Sam Mendes, é um prodigioso filme sobre a bizarra aritmética das relações conjugais — estes textos foram publicados no Diário de Notícias (31 de Janeiro).
Já lá vão onze anos desde que o mundo foi abalado por um fenómeno chamado Titanic. Para além dos espantosos números de bilheteira, o filme de James Cameron conseguiu a proeza de consagrar um novo par romântico: Kate Winslet e Leonardo DiCaprio.
Talvez se esperasse que Winslet/DiCaprio se transformassem numa “receita” de muitos filmes, à maneira de outros pares clássicos de Hollywood. Mas não. Foi preciso esperar até agora para os vermos juntos naquele que é um dos títulos fortes da produção americana de 2008: Revolutionary Road, de Sam Mendes.
Muita coisa mudou, sem dúvida. Leonardo DiCaprio, porventura o mais subtil actor americano da geração nascida na década de 70, continuou a exibir a sua versatilidade através do trabalho com Woody Allen (Celebridades), Steven Spielberg (Apanha-me Se Puderes) ou Martin Scorsese (Gangs de Nova Iorque, O Aviador e Entre Inimigos). Quanto a Kate Winslet, a sua fulgurante maturação desemboca na espantosa composição em Pecados Íntimos, de Todd Field.
Revolutionary Road nasce da confluência de tudo isso (para além de valer a pena não esquecer que Kate Winslet e Sam Mendes são casados desde 2003): estamos perante um filme ancorado no trabalho específico dos actores, sendo inevitável recordar que a experiência do realizador como encenador teatral não é alheia à excelência dos resultados.
Mas seria redutor encarar Revolutionary Road como um mero tour de force dos actores. É bem certo que eles são, de uma só vez, cristalinos e imprevisíveis na representação das crises de um casal do Connecticut, em meados dos anos 50. Seja como for, ao adaptar o romance homónimo de Richard Yates (publicado em 1961), a realização de Sam Mendes visa a complexidade de uma época de grandes transformações nos modos de vida da “classe média”, desse modo apostando na revitalização do género melodramático tal como foi cultivado por mestres como Vincente Minnelli ou George Cukor.
Da arquitectura da época ao kitsch dos automóveis ou elementos de decoração, nada disso existe como ostentação. Ao contrário das ficções de raiz televisiva, aqui nada é estritamente decorativo. Através de elementos como esses, Sam Mendes ajuda-nos a perceber a dolorosa distância entre a ideologia de felicidade de uma época e os sentimentos mais fundos, porventura menos confessáveis, de cada personagem: Revolutionary Road é um filme sobre as diferenças entre a utopia e a realidade, o desejo de amar e a crueza, afinal banal, de uma relação amorosa.
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Quando Beleza Americana (1999) deu a Sam Mendes o Oscar de melhor realizador (com o próprio filme a ser considerado o melhor do ano), esse era apenas um pormenor de uma tradição mais geral da produção americana, tradição que passa por nomes tão emblemáticos como Alfred Hitchcock, David Lean ou John Boorman: muitos autores ingleses têm construído momentos importantes das suas carreiras em Hollywood.
A trajectória de Sam Mendes distinguia-se, em todo o caso, por uma particularidade: ao contrário dos nomes citados, o seu prestígio não passava pelo cinema (Beleza Americana era a sua estreia), mas sim pelo notável trabalho desenvolvido nos palcos de Londres. Depois da sua exuberante revelação como encenador da Royal Shakespeare Company e do Royal National Theater, assumiu em 1992 (com apenas 27 anos) a direcção artística do Donmar Warhouse, teatro estúdio do West End que rapidamente se transformou num pólo de referência de um sentido experimental que não descurava a metódica relação com a tradição: Cabaret (Fred Ebb), The Glass Menagerie (Tennessee Williams) e Company (Stephen Sondheim) foram algumas das suas encenações de maior impacto.
Depois de Beleza Americana, Caminho para Perdição (2002), um retorno ao filme negro, e Máquina Zero/Jarhead (2005), sobre a Guerra do Golfo, são os outros títulos da sua curta mas brilhante filmografia. Actualmente, trabalha na pós-produção de Away We Go, com John Krasinski e Maya Rudolph, sobre um casal que viaja na América à procura do lugar ideal para se instalar e criar uma família.