segunda-feira, fevereiro 16, 2009

História de Rachel e Kym

Nomeada para o Oscar de melhor actriz, Anne Hathaway é uma das prodigiosas presenças desse filme prodigioso que é O Casamento de Rachel, mais um exemplo da versatilidade criativa do realizador Jonathan Demme — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 de Fevereiro), com o título 'Quem se lembra de Jonathan Demme?'.

Mesmo gostando dos Oscars, das expectativas e do glamour, é di-fícil não sentir que se está a esboroar algo do fulgor clássico dos prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Por um lado, a evidência mediática que adquiriram outras distinções da época, a começar pelos Globos de Ouro da Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood (cuja abrangência e representatividade é muito menor que a da Academia), tende a transformar os Oscars numa espécie de capítulo final de uma saga banalmente competitiva: será que se vão “repetir” os prémios já atribuídos? Por outro lado, o tom mais frequente das abordagens jornalísticas (a começar pelos EUA) reduz-se a uma “bolsa de apostas” que não manifesta qualquer amor, nem sequer uma sim-ples atitude de curiosidade, pelos filmes e pelas suas diferenças.
Daí a polarização que tende a acompanhar a temporada de prémios: quase tudo se diz (comenta e especula) em torno de dois ou três títulos rotulados como os mais “competitivos”, apagando as singu-laridades dos outros que, apesar de tudo, também têm nomeações. Repare-se: esses dois ou três títulos mais citados até podem ser obras extraordinárias (e este ano a colheita é muito variada e esti-mulante), mas há sempre alguns filmes mais “pequenos” que quase não conseguem conquistar manchetes.
O Casamento de Rachel, com uma única no-meação para Anne Hathaway na categoria de melhor actriz, é um desses filmes que corre o risco de (não) ser visto como um objecto mais ou menos acidental, apenas pitoresco pelo facto de conseguir chegar, modestamente, ao rol dos nomeados. Quer isto dizer que o funcionamento do mercado — incluindo o comportamento dominante dos espectadores — já nem se revela capaz de dar grande evidência a um filme com assinatura de Jonathan Demme, para todos os efeitos autor de alguns títulos marcantes no imaginário popular do cinema das últimas décadas, a começar por esse já clássico que é O Silêncio dos Inocentes (1991).
Retomando a dimensão mais experimental do seu trabalho, Jonathan Demme faz agora um filme que, sem vernizes revivalistas, se assume como um herdeiro directo das revoluções formais e técnicas do grande cinema americano dos anos 50/60, em particular o que se desenvolveu na comunidade novaiorquina, com John Cassavetes (1929-1989) como fundamental símbolo aglutinador.
Trata-se de filmar as convulsões internas de uma família marcada pela tensão que se desenha (e regressa, ciclicamente) entre duas irmãs, Rachel (Rosemarie DeWitt) e Kym (Anne Hathaway): o casamento da primeira e a visita da segunda (a viver um prolongado e doloroso processo de desintoxicação) instalam um misto de euforia e angústia que leva todas as personagens a questionar as certezas que, tantas vezes, nem que seja por indiferença afectiva, dão como adquiridas. À maneira de vários títulos de Cassavetes (lembremos apenas o genial Faces, de 1968), Jonathan Demme cria um dispositivo em que o efeito de “reportagem” das câmaras vai a par de uma vibração dos actores capaz de gerar a sensação ambígua, sempre muito comovente, de assistirmos à vida em estado nascente. E o paradoxo é este: recuperando modelos com várias décadas, O Casamento de Rachel é uma das proezas mais ousadas e fascinantes do recente cinema americano.