sexta-feira, janeiro 30, 2009

"Slumdog Millionaire": ele e ela (cont.)

Rodagem de SLUMDOG MILLIONAIRE:
Danny Boyle (ao centro) e Loveleen Tandan (à direita)

A nomeação de Danny Boyle para os Oscars, como realizador do filme Slumdog Millionaire, tem suscitado algum debate de ideias. Como referi em post anterior, há quem considere que a não-nomeação da co-realizadora Loveleen Tandan representa uma forma de discriminação: a crítica Jan Lisa Huttner defende mesmo que é importante fazer pressão sobre a Academia de Hollywood no sentido de alterar a regra (só pode haver um nome nomeado na categoria de melhor realização) que "justifica" tal omissão. Nesse post escrevi:

>>> Tentando contrariar esta lógica, a crítica Jan Lisa Huttner tem chamado a atenção no seu blog The Hot Pink Pen — empenhado na defesa dos direitos de mulheres realizadoras e argumentistas — para o anacronismo da regra, considerando mesmo que se está a perder a oportunidade histórica de nomear a primeira mulher de cor para melhor realização (...) <<<

Estas palavras levaram um dos nossos visitantes, Wellington Almeida, a dirigir-me um mail. Eis a sua argumentação:

>>> Não tenho aqui muito a dizer e nem vou entrar em dissertações sociológicas a respeito das disparidades semânticas que uma palavra possa vir ter e vou directo ao assunto: como grande apreciador dos seus textos — sejam eles peças jornalísticas ou mesmo as "informais" aqui no blogue — acho extremamente perigoso que o senhor use este eufemismo "de cor" para designar a raça "negra". Já há muito tempo muita tinta é gasta sobre este tema (negro? preto?) e nem estou a fazer suposições sobre suas políticas pessoais, mas esta quase que "suavização" da palavra NEGRO torna-se inequivocadamente ofensiva para mim. Quero dizer, estão a perder a oportunidade histórica de nomear a primeira mulher de cor para melhor realização mas...de que cor? <<<

* * * * *

1. Começo por esclarecer que o eufemismo “de cor” não designa a raça “negra”: Loveleen Tandan é indiana e tem a pele castanha. Aliás, num artigo da Newsweek em que é referida a não-nomeação de Tandan como co-realizadora, Ramin Setoodeh escreve uma frase de certeira ironia: “[O filme] Slumdog está cheio de rostos castanhos (brown faces) mas, no palco dos Oscars, praticamente todas as pessoas que forem receber prémios por ele têm rostos brancos.”

2. O “anacronismo da regra” a que me refiro — e que Jan Lisa Huttner aponta — decorre, não da cor da pele seja de quem for, mas apenas do facto de não ser possível nomear mais do que uma pessoa na categoria de melhor realização (mesmo quando, como é o caso de Loveleen Tandan, alguém aparece citado no filme como “co-realizador”).

3. Foi a própria Jan Lisa Huttner a referir-se à situação utilizando a expressão “of colour” (“de cor”). A citação está disponível no IMDb: “Ao longo de 80 anos, apenas três mulheres foram nomeadas para o Oscar de melhor realização — Lina Wertmuller, Jane Campion e Sofia Coppola — e apenas dois homens de cor: John Singleton e Ang Lee, que ganhou por Brokeback Moutain. Se Loveleen Tandan for co-nomeada pelo seu trabalho em Slumdog Millionaire, então será a primeira mulher de cor a ser nomeada para o Oscar de melhor realização e, se ganhar, será a primeira mulher a receber tão grande honra.”

4. O meu texto contém um erro de citação: a expressão “primeira mulher de cor” deveria surgir entre aspas, desse modo remetendo para o discurso de Jan Lisa Huttner.

5. A questão de fundo que se coloca está exemplarmente resumida por Wellington Almeida quando pergunta: “(...) estão a perder a oportunidade histórica de nomear a primeira mulher de cor para melhor realização mas...de que cor?” A resposta directa à sua pergunta é: de cor castanha. Mas, de facto, cada palavra e cada expressão está muito longe de se esgotar no discurso de um indivíduo, seja ele quem for, ou nas suas intenções. Podemos reavaliar a complexidade semântica, simbólica, política e afectiva de tais questões através de um didáctico artigo de William Safire (‘On language; people of color’), publicado em 1988 em The New York Times — depois de comentar as muitas convulsões históricas das expressões que se referem à cor da pele, o autor conclui assim: “Quando usada por brancos, people of color [pessoas de cor] transporta normalmente uma conotação amigável e respeitosa, mas não deverá ser usada como sinónimo de negro [black]; refere-se a todos os grupos raciais que não são brancos.”

6. O meu texto contém um segundo erro, este de avaliação de linguagem. De facto, ao traduzir a expressão em causa (de cor), embora a tenha assumido no sentido que decorre do seu contexto de enunciação (americano), não tive em consideração os inevitáveis efeitos — simbólicos e de leitura — que podem ser arrastados pela passagem de uma língua para outra.

7. Wellington Almeida escreve que não faz “suposições” sobre as minhas “políticas pessoais”. Pelo contrário, creio que o pode e deve fazer, sobretudo quando, como é o caso, tenta fazer algo a que atribuo a máxima importância: a interpretação dos subtextos simbólicos que um discurso — por vezes, uma simples palavra — pode arrastar. Repudio todas as formas de racismo, pelos actos e pela escrita. Mas as declarações de princípio não devem impedir o reconhecimento de erros como aqueles que cometi. Por eles me penalizo, apresentando as minhas desculpas.