segunda-feira, janeiro 19, 2009

O corvo negro

Nasceu em Boston, a 19 de Janeiro de 1809. 200 anos depois, o dia é celebrado com edições em livro. Com exposições e evocações. E, no Poe Museum em Richmond (na Virgínia), com um dia inteiro dedicado à memória da sua vida e obra. Chamam-lhe o Edgar Alan Poe 24 Hour Birthday Bash, um programa intenso que inclui a inauguração da exposição Poe Face to Face: Early Portraits of Edgar Allan Poe, performances, leituras, actuações musicais e um passeio à luz de velas ao cair da noite... Este é apenas um dos acontecimentos numa agenda que, até Dezembro, promete evocar os espaços, a escrita e as memórias do escritor.

Um site expressamente dedicado à celebração dos 200 anos do escritor inclui informação diversa, nomeadamente a agenda completa de eventos marcados para este ano. Pode ser consultado aqui.

Não é por acaso que, 200 anos depois, Edgar Allan Poe seja evocado com tão expressiva intensidade. Sua “fama”, de resto, não é fruto do acaso. Um dos mais notáveis e venerados escritores americanos do século XIX, Allan Poe viveu 40 anos entre alguns sonhos e pesadelos, entre frestas de paz e bem estar e frequentes temporadas de pobreza e infortúnio, entre raros episódios de sucesso (sobretudo depois da publicação de The Raven em 1845) e etapas de dependência do álcool. A escrita, as suas formas e temas, reflectiram necessariamente toda uma vivência de valores alterados, de decepções, de desilusões. O fantástico, melancólico, a inquietude e alguma ocasional solenidade são marcas ditadas pela experiência.

Edgar Poe nasceu em 1809. Abandonado pelo pai com menos de um ano de idade, perdeu também a mãe muito cedo, sendo educado e protegido por Frances Keeling Vallentine Allan, esposa sem filhos de um rico escocês residente em Richmond. A escrita foi uma descoberta precoce do jovem Edgar, que também cedo conheceu as primeiras tragédias da sua vida, da loucura e morte de uma vizinha de quem foi amante às dívidas acumuladas na universidade, de um progressivo mau relacionamento com o padrasto (que nunca o adoptaria) a uma catastrófica carreira militar e a mais um caso amoroso vetado pelos pais da jovem, receosos de votar a filha a tão incerto futuro... A morte da protectora "madrasta", a cujo funeral não chegou a horas por falta de atenção do padrasto, terá representado a gota de água. Avesso a um futuro literário, John Allan recusou manter contacto com Edgar. A etapa de Richmond tinha um ponto final ainda antes do futuro escritor completar os 20 anos.
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Ainda jovem, em 1827 Edgar Allan Poe edita os primeiros poemas. A escrita seria o seu real futuro, quer numa carreira jornalística sacudida por tempestades pessoais, quer na edição ocasional de poemas e contos. A carreira jornalística de Edgar Allan Poe é digna de referência, tendo representado um foco de reflexão de conceitos revolucionários para a época. Editor do Southern Literary Messenger entre 1835 e 37, Allan Poe revolucionou as formas da crítica literária, levantando questões, perturbando até, usando a linguagem para ensaiar um outro tipo de comunicação, mais clara e austera, em contraste com o registo pesado e rebuscado do seu tempo. Ao mesmo tempo procurava novas temáticas para a sua própria escrita, ostentando uma certa fascinação pelo mórbido. Homem de sonhos, não conseguiu nunca levar a bom termo o seu maior desejo, o de editar uma revista literária, a The Stylus, obsessão que o acompanhou nos últimos anos. Com The Raven, em 1845, conquistou um primeiro êxito e lugar nos salões literários. Mas outro fado lhe estava destinado. A saúde da mulher obrigou-o a procurar um destino rural. Ela morreria em 1847, sobrevivendo-lhe ele apenas dois anos, com triste fim em Baltimore a 7 de Outubro de 1849. Diz-se que na sequência de uma intoxicação alcoólica...
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Edgar Allan Poe no cinema...

O cinema e a ficção televisiva recorrem frequente à obra de Poe em busca de histórias “extraordinárias”. Contudo, são mais frequentes as citações (como em Vincent, de Tim Burton ou n’O Corvo, de Alex Proyas) que as adaptações directas, mais sendo ainda os casos em que dos contos e poemas de Poe saíram ideias que inspiraram versões com alguma liberdade... criativa...

As primeiras evidências do potencial cinematográfico da obra do escritor datam ainda dos dias do mudo, várias sendo as adaptações das suas histórias e também primeiros olhares biográficos sobre a sua vida. A mais importante obra cinematográfica centrada no legado de Edgar Allan Poe deve-se a Roger Corman que, nos anos 60, adaptou ao grande ecrã, e com a determinante colaboração de Vincent Price, alguns dos seus títulos de referência, entre os quais House Of Usher (1960), The Pit and The Pendulum (1961) ou The Raven (1963). AS histórias de Poe continuam a inspirar realizadores e produtores nos nossos dias, hoje sendo evidentes algumas heranças suas em diversos exemplos da ficção televisiva. Um episódio de CSI juntou dois contos de Poe para deles fazer nascer uma história dos nossos dias. Não menos inesperadas são também as homenagens que entretanto surgiram já em séries de animação como Os Simpsons ou Futurama.

... e na música
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Entre as experiências de relação da obra de Poe com a música destaca-se, claramente, o álbum The Raven, editado em 2003 por Lou Reed. A ideia partiu de POEtry, espectáculo que teve primeira representação em Hamburgo, no ano 2000. O mergulho nos universos de Edgar Allan Poe decorre de uma admiração e identificação antigas do próprio Lou Reed, que reconhece no escritor um homem à frente do seu tempo, um espírito atormentado por obsessões, paranóia e desejos de auto-destruição que encontram espelho em canções que o músico gravou nos seus mais de 40 anos de carreira. Reed aponta inclusivamente Allan Poe como pai espiritual da escrita de William Burroughs e Hubert Selby, cujo sangue inspirador flui entre as melodias de muitas das suas canções. O regresso mais atento às páginas de Allan Poe foi motivado por uma actuação na St Anne's Church (Nova Iorque), da qual Lou Reed compreendeu a carga das palavras enquanto texto lido...
Construído de forma claramente distinta face ao que é habitual num álbum de canções rock, The Raven é uma evolução adaptada da música e textos usados em POEtry, e apresenta-se no formato de um CD (ou, melhor, dois, já que a totalidade do “programa” se escuta apenas no disco duplo lançado em edição limitada). Lou Reed conta com um elenco de notáveis, entre os quais se contam David Bowie (um reencontro três décadas depois de Transformer), Willem Dafoe, Steve Buscemi, Martha e Kate McGarrigle (a mãe e tia de Rufus Wainwright, conhecidas como as McGarrigle Sisters), os Five Boys Of Alabama, Ornette Coleman (um ícone antigo), Anthony Hegarty (então para muitos ainda um ilustre desconhecido, que colaborava em soberbas versões de Bed, de Berlin, e Perfect Day, de Transformer) e, naturalmente, Laurie Anderson (a quem, de resto, é dedicado o disco).

O projecto de Lou Reed não correspondeu a uma primeira abordagem da música ao universo literário de Edgar Allan Poe. Debussy chegou a trabalhar uma partitura para The Fall Of The House Of Usher, texto que Peter Hammil transformaria numa ópera, tal como o fez, depois, Philip Glass. O mesmo Philip Glass regressaria ao contacto com Allan Poe numa partitura para bailado inspirada por A Descent Into The Maelström. Nos universos da cultura pop/rock as referências são muitas e geograficamente dispersas, com importantes pólos de referência em Tales Of Mistery And Imagination, do Alan Parson Project (em 1976). Mas há mais: os franceses Askin recorreram por diversas vezes a Poe em busca de temas para as suas canções; Mylène Farmer gravou Allan no álbum de 1988 Ainsi soit-je (dedicado a Allan Poe); os italianos Goad são uma banda criada a partir de uma veneração pelo escritor; os californianos Mr Bungle incluíram um excerto de Berenice em Carry Stress In The Jaw; os espanhóis Radio Futura fizeram uma canção para as palavras de Annabel Lee... A editora Cleopatra Records editou Songs Of Terror, um disco de tributo a Edgar Allan Poe no qual militam várias bandas de rock gótico. E os Beatles não se esqueceram do escritor na hora de convocar figuras para a capa de Sgt. Peppers’ Lonely Hearts Club Band, em 1967.
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PS. O texto inclui sequências de um dossier publicado no DN em 2003, a propósito da edição do álbum The Raven, de Lou Reed