A obra do mexicano Fernando Corona, através do seu projecto Murcof, conta-se entre as mais inventivas e estimulantes que a música electrónica nos revelou na presente década. Descobrimo-lo em Martes (2002), disco que juntava uma lógica de composição atenta ao pormenor, ao fragmento, revelando sugestões de contemplação onde, por entre as electrónicas, brotava a presença (determinante) de outras paisagens, entre as quais se destacavam samples de obras de Arvo Pärt. Como que a assinalar, desde logo, o seu interesse em lançar a sua curiosidade sobre terrenos mais próximos da música habitualmente rotulada como “erudita”, abrindo assim o horizonte das possibilidades a um espaço mais vasto que o das mais frequentes escolas seguidas por muitos dos artesãos contemporâneos das electrónicas. De então para cá editou discos de remisturas e mais dois álbuns de originais: Remembranza (2005) e Cosmos (2007), que deram novo corpo à mesma demanada. Agora, anunciando para breve a verdadeira continuação desta história em Oceano (a editar em data a revelar), lança um disco que considera exterior a este percurso... Mas que, na verdade, traduz o seu mais profundo e bem sucedido mergulho num espaçlo de confluência de linguagens, dele resultando uma música que é uma verdadeira dor de cabeça para quem gosta de taxonomias, porque impossível de rotular. The Versaillhes Sessions nasceu de um desafio concreto para um espectáculo nos jardins do Palácio de Versalhes. Uma obra site-specific, portanto, criada para o espectáculo Les Grands Eaux Nocturnes uma noite de música e luz frente a uma das grandes fontes (jeux d’eau) que adornam o Jardin du Roi, para a qual Fernando Corona fez questão de juntar a uma composição claramente do presente uma série de ecos dos dias em que esta era “a” casa da mais faustosa corte europeia, na qual trabalharam muitos compositores. O disco junta as seis composições apresentadas. Por elas corre o sentido contemplativo, lento, habitual na música de Murcof. Regressa um claro interesse pela exploração de texturas. Mas mais que nunca Fernando Corona aceitou os desafios lançados a si mesmo. A música, que parece sugerir um espaço abstracto, acaba por ganhar forma, corpo, mesmo um carácter cinematográfico. A presença de instrumentos do século XVII (entre os quais um cravo, viola da gamba ou violinos) e de um soprano sublinham os cenários e lança narrativas que evocam concretamente figuras como Lully ou, inevitavelmente, Luis XIV. Fantasmas e memórias cruzam-se numa série de composições onde passado e presente se diluem. Fosse vivo, Kubrick teria feito um novo filme se escutasse esta música.
Murcof
“The Versailles Sessions”
Leaf / Flur
5 / 5
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Depois da barrigada de boas ideias e belos discos que fizeram de 2008 um dos melhores anos de música portuguesa dos últimos tempos, 2009 entra em cena mantendo em “alta” este clima pop/rock oposto ao da “crise” de que se fala nos jornais e noticiários com a estreia em disco d’Os Quais. É “apenas” um Meio Disco. Um mini-LP, como se dizia em tempos, com um alinhamento de seis temas. Meio disco seja, mas já capaz de nos dar conta de uma ideia inteira. Uma ideia que parte da soma da escrita de Jacinto Lucas Pires (o escritor) à música de Tomás Cunha Ferreira (o pintor), juntando um mundo de canções escutadas que passam por nomes como os Beatles, António Variações, Prince ou Caetano Veloso. Este último, pelo tempero que domina algumas das canções no miolo do alinhamento, ganhará algum protagonismo na lista das citações de referências quando d’este disco d’Os Quais se falar. Mas Caetano é aqui tão assimilado como os demais “ícones” referidos, encarados através da vivencia dos dois músicos que fazem destas canções um local seu, matematicamente talvez algures entre os dois lados do Atlântico, mas com tempo e lugar assinalados claramente no nosso aqui e no nosso agora. As sugestões narrativas, assim como as molduras de som que as envolvem, colocam-nos no Portugal de hoje, pequenas citações servindo a caracterização dos cenários. Entre a linguagem rock’n’roll e a assimilação de modelos mais próximos da canção popular, o Meio Disco dá conta de uma ideia musical aberta ao desafio. De resto, as palavras de José Tolentino de Mendonça e o saxofone de Carlos Martins fazem já, de Caído no Ringue, uma das melhores canções que escutaremos este ano.
Os Quais
“Meio Disco”
Amor Fúria / Mbari
4 / 5
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Por muitas razões o regresso dos Franz Ferdinand aos discos era aguardado com expectativa. Era inevitável. A sua estreia, em 2004, revelou a mais entusiasmante colecção de canções que a pop britânica conhecia em vários anos, assinalando ainda aquela que se afirnaria como a obra central a uma nova geração de bandas que reencontrou como referência memórias (algo esquecidas) da new wave de finais de 70. Confirmaram o estatuto ao segundo álbum, numa altura em que alguns dos seus contemporâneos editavam segundos discos menores, alguns deixando o comboio logo nessa estação... E resolveram sair de cena. Alex Kapranos escreveu no Guardian uma coluna sobre restaurantes (que entretanto deu um livro). Tocaram com músicos africanos. Construiram o seu próprio estúdio. Testaram novas canções em concertos inesperados e nada mediatizados. E agora regressam... Tonight: Franz Ferdinand é contudo, e apesar de uma mão cheia de belíssimas canções (e de bons motivos para dançar), um relativo desapontamento. Não um tiro ao lado. Nem um desaire. Mas um retrato de uma aparente indecisão, parecendo o grupo querer estar em terreno seguro e, ao mesmo tempo, tactear ideias novas que, apesar de materializadas numa ou outra canção, não ganham nunca espaço para se afirmar em pleno. Live Alone pisca o olho à pop, com sabor electrónico. Send Him Away acolhe temperos afro. Bite Hard assimila heranças art rock de 70. E Lucid Dreams dá ideia de quão aliciante poderia ter sido o disco, caso este tivesse sido o caminho adoptado... Ao terceiro disco, os Franz Ferdinand mostram que souberam resistir à erosão que apagou do mapa ou magoou algumas outras carreiras nascidas na presente década. Mas ao jogar à defesa perdem a vantagem com que se apresentavam, como potenciais protagonistas, em 2009.
Franz Ferdinand
“Tonight: Franz Ferdinand”
Domino / Edel
3 / 5
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Editado lá fora há já algum tempo, chega agora a estas paragens o álbum de estreia do colectivo Clare & The Reasons. A Clare do nome da banda é filha do guitarrista de blues Geoff Muldaur e reuniu à sua volta, pelo bairro de Brooklyn, em Nova Iorque, um “combo” que consigo partilha esta aventura pop com travo jazzy. Longe do apelo mais contemporâneo da dupla jazz pop The Bird & The Bee (que edita pela Blue Note), o álbum de estreia de Clare & The Reasons procura pistas em memórias da canção pré-rock’n’roll, não escondendo um gosto por referências retro que passam pela música do teatro musical e pelos domínios da pop orquestral. Não espanta a presença, entre a lista de colaboradores, de Van Dyke Parks, que assina arranjos. Mais inesperada é talvez a também mais discreta participação de Sufjan Stevens... O álbum apresenta uma colecção de canções delicadas, de formas polidas. Voz frágil, orquestrações luxuriantes, todavia cientes de que desenham um cenário. É um disco que pode cruzar gostos e públicos, firme numa linguagem popular, mas com algumas raízes firmes em terrenos menos “unânimes”. O alinhamento abre com Pluto, o momento maior do álbum, que regressa a fechar o disco, numa versão (com arranjo distinto) em francês. The Movie não é um álbum ousado ou aventureiro. É até uma experiência reveladora de um sentido de contenção. E talvez more nessa mesma contenção aquela dose adicional de entusiasmo que poderia ter transformado uma razoável de canções num momento surpreendente...
Clare & The Reasons
“The Movie”
Fargo Records
3 / 5
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Apesar das ocasionais excepções, o universo pop/rock britânico - facção alternativo, com guitarras, e claras ambições de querer ir mais longe - tem gerado poucas revelações decididamente marcantes nos últimos anos. E o álbum de estreia dos Glasvegas, apesar dos clamores que gerou “em casa”, está muito longe de ser o disco para fazer a diferença. Na base das ideias deste quarteto, nascido em Glasgow e com obra editada em singles desde 2004, está uma mão cheia de referências, as mais frequentemente citadas referindo as memórias de uns Jesus & Mary Chain ou o revisitar de modelos que colocaram na história o produtor Phil Spector... Mais uma pitada de Kasabian... E por perto também as presenças tutelares de uns Oasis... A música não esconde uma ambição épica de criar hinos. Hinos que sucedem, faixa a faixa, em doses de pompa oca que faz das canções pretensos monumentos pouco ou nada convincentes. O Beethoven emprestado a S.A.D. Light, convenhamos, não ajuda... No fim, o contraste entre a grandiosidade épica das formas e os retratos cantados, em aparente piscar de olho a supostos cenários de realismo social, sublinha o estranho sabor que nos deixa a audição do álbum. Um pouco como se o argumento para um filme de Mike Leigh acabasse nas mãos de um John Woo... É certo que evitam o baralha e volta a dar que nos últimos tempos fazia parecer que não havia saída para uma pop inglesa musculada (ler com guitarras) fora das esferas da reinvenção do legado new wave. Mas não deixam de transparecer uma vontade em seguir as piores opções das etapas menos estimulantes da obra de uns U2... E apesar da conta certa de dez temas, Glasvegas é daqueles discos que parece que nunca mais acaba...
Glasvegas
“Glasvegas”
Columbia / Sony
2 / 5
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Também esta semana:
Bruce Springsteen, Future of the Left, The Bird and The Bee, Johnny Cash (remixes), Of Montreal (EP), Six Organs of Admittance, Swing Out Sister, Titus Andronicus
Brevemente:
2 de Fevereiro: Doismileoito, Andrew Bird, Benjy Ferree, Jim White, Lloyd Cole, Dakota Suite, A Camp, Burt Bacharah (best of)
9 de Fevereiro: Lilly Allen, Van Morrission (live), Erasure (remixes), Frida Hyvonen, A.S. Mutter (Mendelssohn), Emmy The Great, Pet Shop Boys (reedições)
16 de Fevereiro: Beirut, Morrissey, M Ward, Empire Of The Sun, Dark Was The Night, Jah Wobble, Ultravox (reedições), Visage (reedição), REM (reedição), Graham Nash (reedição),
Fevereiro: Björk (DVD), Casiotone for the Painfully Alone, Kate Bush (DVD), Asobi Seksu, Dean & Britta (DVD), Vetiver, Grandmaster Flash, Pearl Jam (reedição), Robert Wyatt (caixa), John Hassel, J.E. Gardiner (Brahms), Sound of Arrows
Março: U2, Grizzly Bearl, Neko Case, White Lies (ed nacional), Xutos & Pontapés, The Prodigy, Mexican Institute of Sound, Mirah, Bonnie 'Prince' Billy, William Orbit, The Decemberists, PJ Harvey + John Parish, Arcade Fire (DVD), MSTRKRFT, Frank Black, VV Brown, Bell Orchestre, Fever Ray
Abril: Tortoise, Art Brut, Vitalic, Bill Callahan