O cinema italino possui um imenso, complexo e riquíssimo património que importa revisitar. Felizmente, o mercado do DVD tem demonstrado alguma atenção a tal património — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 de Dezembro), com o título 'Para redescobrir o cinema italiano'.
Felizmente, o nosso mercado do DVD já deixou de depender dos ditames de uma lógica (ou falta de lógica) que fazia com que a oferta se confundisse com o cartaz das salas de cinema... seis meses antes. Contrariando a visão mais populista, já se demonstrou que é falso que esse mesmo mercado apenas funcione através de blockbusters e com títulos apoiados por campanhas mais ou menos ruidosas. Bem pelo contrário, confirmando aquilo que alguns críticos de cinema serenamente sublinham há várias décadas (não é engano: décadas!), o mercado dá mostras de compreender que o público não existe como uma massa amorfa, mas sim como um labirinto fragmentado, com muitos nichos, todos eles com interessantes potencialidades comerciais.
Vem isto a propósito de alguns recentes lançamentos (com a chancela da editora Costa do Castelo) que nos recolocam face ao fascinante património do cinema italiano. O destaque vai, inevitavelmente, para a obra de Valerio Zurlini (1926-1982), um daqueles autores cujo romanesco subtil, por vezes convulsivo, está muito esquecido. De Zurlini passaram a estar disponíveis Um Verão Violento (1959), A Rapariga da Mala (1961), Outono Escaldante (1972) e O Deserto dos Tártaros (1976).
Depois, há dois regressos. Ou seja: Pier Paolo Pasolini (1922-1975) e Michelangelo Antonioni (1912-2007). No caso de Pasolini, passamos a ter um dos mais prodigiosos objectos cinematográficos que já se fizeram a partir da escrita bíblica: O Evangelo Segundo São Mateus (1964), filme que tem a coragem política de escolher o realismo mais paradoxal contra a abstracção figurativa. Os restantes títulos editados são Accattone (1961), o raríssimo A Raiva (1963), trabalho de raiz documental sobre o pós-guerra, e ainda o filme de episódios Ro.Go.Pa.G. (1963), em que Pasolini partilha a autoria com Roberto Rossellini, Jean-Luc Godard e Ugo Gregoretti.
Antonioni reaparece nos circuitos do DVD através de alguns dos títulos que ajudam a compreender a formação de um olhar (e uma estética) que se afirmaria de forma decisiva a partir de A Aventura, no começo dos anos 60. Assim, o mercado passou a oferecer quatro preciosidades da década anterior: A Dama sem Camélias (1953), Os Vencidos (1953), As Amigas (1955) e O Grito (1957). Além do mais, surgiu também uma edição de A Noite (1961), filme que juntamente com A Aventura e O Eclipse (1962) define uma admirável “trilogia a preto e branco” cuja percepção intimista de uma sociedade seduzida pelas euforias do dinheiro e do consumo permanece amargamente actual. Quando vemos ou revemos Jeanne Moreau, Marcello Mastroianni e Monica Vitti, em A Noite, compreendemos que Antonioni criou um admirável sistema de mise en scène que, sem recusar algumas marcas dos clássicos “retratos psicológicos”, abre perspectivas novas para as contradições de uma sociedade iludida pelo seu ideal de felicidade.
São filmes, além do mais, que nos ajudam a combater ou esquecimento de um cinema italiano que, em qualquer caso, continua a possuir alguns dos mais brilhantes criadores europeus. Lembremos Nanni Moretti (de quem estreou, em 2007, o genial O Caimão) ou ainda Matteo Garrone que, com Gomorra, conquistou há dias o prémio de Filme Europeu 2008.