domingo, dezembro 28, 2008

Os sons do silêncio

Clássicos do Século XX - 9
'Alina', de Arvo Pärt
(compsições de 1976 e 78, editadas em 1999)

Arvo Pärt (n. 1935) é muitas vezes citado como um dos principais compositores minimalistas europeus, autor de uma obra que, apesar de algumas afinidades filosóficas com contemporâneos americanos, se revela formalmente distinta. Há até quem o apresente como o fundador daquilo que foi já designado como minimalismo sagrado, partilhando aí espaço de trabalho com outras figuras como o polaco Henryk Gorecki ou o britânico John Tavener. Respectivamente de 1976 e 78, as peças Für Alina e Spiegel Im Spiegel representaram momentos decisivos na definição de uma linguagem, da qual decorre muita da obra posterior do compositor. Für Alina é uma peça para piano solo, que ocupa apenas duas páginas numa partitura mas que desafia cada intérprete à reflexão, não estabelecendo nunca o limite de tempo para a sua performance. Já Spiegel Im Spiegel é um diálogo, originalmente criado para piano e violino (que ocasionalmente cede o lugar a uma viola ou violoncelo). Como o título sugere, é um espelho num espelho, cada instrumento reflectindo-se no outro, em ciclos sucessivos, com gradual adição de notas, mas tempo limite definido. Com aprovação do próprio compositor, o álbum Alina (ECM, 1999) apresenta gravações das duas peças. Em concreto, duas de Spiegel Im Spiegel para violino e piano e uma para violoncelo e piano, entre as quais se escutam duas sequências seleccionadas pelo compositor de uma longa interpretação de Für Alina, por Alexander Malter.

Natural de Paide (na Estónia, depois de 1940 parte da URSS), cresceu sob poder soviético. As suas primeiras obras, claramente distintas das que dele hoje são apresentadas e gravadas, reflectiam um interesse por compositores como Shostakovich, Prokofiev, Bartók e Shoenberg... Alguns dos trabalhos foram alvo de censura. Esta barreira, que se somou a um descontentamento sobre os caminhos que seguia, levaram Arvo Part a um radical repensar de ideias musicais. Em 1980 Arvo Part deixou a URSS, mudando-se primeiro para a Áustria, mais tarde para Berlim, na Alemanha. Fez longo período de silêncio meditativo, durante o qual estudou o cantochão e as primeiras formas de polifonia. Da reflexão nasceram então novas ideias, entre as quais o estilo habitualmente descrito como “tintinnabuli” ou seja, que traduz sons que sugerem discretos sinos. A sua música passou então a revelar harmonias simples, claramente inspiradas pela memória da música medieval, com o tempo acabando por abordar directamente o canto, no contexto de uma nova música religiosa. Num texto incluído no booklet de Alina, lê-se: “Compararia a minha música à luz branca, que contém todas as cores. Apenas um prisma pode dividir as cores e fazer com que apareçam; esse prisma pode ser o espírito do ouvinte”. Melhor descrição seria impossível...

A música de Arvo Pärt foi há muito descoberta por outras artes, nomeadamente o cinema, tendo surgido em filmes como, entre outros, A Barreira Invisível de Terrence Malick; Les Amants du Pont-Neuf, de Léos Carax; Haverá Sangue, de Paul Thomas Anderson ou O Bom Pastor, de Robert de Niro. Todavia, aquela que é até agora a mais interessante utilização de música sua num filme, porque capaz de traduzir pela imagem e sugestão narrativa os percursos internos da composição, deve-se a Gus Van Sant, em Gerry (na foto). Spiegel Im Spiegel e Für Alina são, precisamente, as composições que ocasionalmente rompem o silêncio e os ruídos do deserto, acompanhando as notas a caminhada sem Norte que acompanhamos com Matt Damon e Casey Affleck.



Imagens de uma masterclass de Arvo Pärt, na qual lhe é pedido que fale de Für Alina. Mais que explicar as motivações que conduziram à obra, caminha sobre o teclado, deixando que as notas revelem as ideias, que então vai explicando.