Durante o mês de Novembro, o Centro Cultural de Belém apresentou 'Um esboço do nada', ciclo multidisciplinar dedicado à obra e personalidade do japonês Yukio Mishima (1925-1970). O texto que se segue integrava o jornal editado para o ciclo, com o título 'Morrer contra as imagens'.
[1] Há uma espantosa fotografia de Mishima datada de Abril de 1931 (portanto, com seis anos de idade). É uma pose com o uniforme da escola, incluindo um boné, tudo com evidentes conotações militares. A imagem, de meio corpo, apresenta-o com as mãos colocadas sobre um suporte de madeira, olhando fixamente, dir-se-ia em absoluta neutralidade, para a esquerda do enquadramento. A luz, natural ou não, mas muito controlada, ilumina-o a partir da direita da imagem, esbatendo-se no tronco, da direita para a esquerda. Isto faz com que o rosto se apresente claramente dividido: a metade do rosto do lado da luz está iluminada, enquanto a outra permanece na sombra, embora deixando perceber o olho direito da criança.
O que torna a fotografia tão fascinante é o paradoxo irresolúvel em que a percebemos. Assim, por um lado, tudo nela parece promover um conceito de serenidade e apa-ziguamento, mesmo à custa do rasurar de qualquer resto de infância ou infantilismo (se autonomizarmos os olhos, pressentimos uma tristeza completa-mente adulta); ao mesmo tempo, por outro lado, não conseguimos olhar a imagem sem a associar ao Mishima, também em uniforme, na varanda de um quartel de Tóquio. Dir-se-ia que as imagens do passado estão condenadas a absorver todo o futuro com que as redescobrimos, um pouco como quando reencontramos, em fotogra-fia, um ser amado e, por mais distantes ou anónimos, nos sentimos prisioneiros do presente que a própria fotografia instaura.
Provavelmente, Mishima não pensou nos seus espectadores do futuro. Assombrado pela sua condição de máscara, inebriado pelo efeito de a recusar, viveu na condição de primeiro espectador de si próprio. Que é como quem diz: assumindo até às derradeiras consequências o desafio de transformar em arte todos os momentos da sua vida (incluindo o momento da sua destruição). A sua morte era, afinal, o seu futuro. Se regressarmos a Confissões de uma Máscara, as suas palavras iniciais redobram de violência: “Durante muito tempo, sustentei que era capaz de me lembrar de coisas que tinha visto na altura do meu nascimento.”
[1] Há uma espantosa fotografia de Mishima datada de Abril de 1931 (portanto, com seis anos de idade). É uma pose com o uniforme da escola, incluindo um boné, tudo com evidentes conotações militares. A imagem, de meio corpo, apresenta-o com as mãos colocadas sobre um suporte de madeira, olhando fixamente, dir-se-ia em absoluta neutralidade, para a esquerda do enquadramento. A luz, natural ou não, mas muito controlada, ilumina-o a partir da direita da imagem, esbatendo-se no tronco, da direita para a esquerda. Isto faz com que o rosto se apresente claramente dividido: a metade do rosto do lado da luz está iluminada, enquanto a outra permanece na sombra, embora deixando perceber o olho direito da criança.
O que torna a fotografia tão fascinante é o paradoxo irresolúvel em que a percebemos. Assim, por um lado, tudo nela parece promover um conceito de serenidade e apa-ziguamento, mesmo à custa do rasurar de qualquer resto de infância ou infantilismo (se autonomizarmos os olhos, pressentimos uma tristeza completa-mente adulta); ao mesmo tempo, por outro lado, não conseguimos olhar a imagem sem a associar ao Mishima, também em uniforme, na varanda de um quartel de Tóquio. Dir-se-ia que as imagens do passado estão condenadas a absorver todo o futuro com que as redescobrimos, um pouco como quando reencontramos, em fotogra-fia, um ser amado e, por mais distantes ou anónimos, nos sentimos prisioneiros do presente que a própria fotografia instaura.
Provavelmente, Mishima não pensou nos seus espectadores do futuro. Assombrado pela sua condição de máscara, inebriado pelo efeito de a recusar, viveu na condição de primeiro espectador de si próprio. Que é como quem diz: assumindo até às derradeiras consequências o desafio de transformar em arte todos os momentos da sua vida (incluindo o momento da sua destruição). A sua morte era, afinal, o seu futuro. Se regressarmos a Confissões de uma Máscara, as suas palavras iniciais redobram de violência: “Durante muito tempo, sustentei que era capaz de me lembrar de coisas que tinha visto na altura do meu nascimento.”