Durante o mês de Novembro, o Centro Cultural de Belém apresentou 'Um esboço do nada', ciclo multidisciplinar dedicado à obra e personalidade do japonês Yukio Mishima (1925-1970). O texto que se segue integrava o jornal editado para o ciclo, com o título 'Morrer contra as imagens'.
Yukio Mishima pôs fim à sua existência a 25 de Novembro de 1970, por “seppuku”, forma ritualizada de suicídio enraizada, na tradição japonesa, no código de honra dos samurais. Fê-lo no quartel de Tóquio das Forças de Auto-Defesa do Japão. Pouco antes do seu gesto final, numa varanda desse mesmo quartel, Mishima [foto] dirigiu-se a uma multidão de soldados, tentando, sem êxito, incitá-los à revolta e à reposição dos valores imperiais anteriores à guerra.
Além de algumas fotografias, existe um breve registo filmado dessa prelecção de Mishima. Podemos mesmo encontrar tal registo na Internet, no YouTube [video: japonês, sem legendas], sendo inevitável pensar na perversa degradação ontológica com que o nosso admirável mundo novo banalizou as suas imagens. De facto, não parece possível apagar a perturbação que rasga a vida (e a morte) de Mishima, e tanto mais quanto ela se espraia por uma obra imensa que passa pelos domínios do romance, ensaio, poesia e teatro. Ao mesmo tempo, quer queiramos, quer não, quando o vemos nessa varanda que se confunde com um derradeiro “altar”, é difícil não sentir que a ideologia do fait divers veio contaminar, porventura de forma irreversível, o radicalismo da sua morte (e também da sua vida).
Há na pulsão suicida de Mishima uma intensidade que não se esgota no desafio, ao mesmo tempo simbólico e institucional, inerente à sua morte. Na verdade, ele terá sido um dos derradeiros heróis de um mundo ainda não convertido ao torpor fascinado das nossas auto-estradas da comunicação. Podemos mesmo arriscar dizer que, para além das suas incontornáveis componentes nacionais, a arte de Mishima nos continua a falar como produto de um desejo anterior, inevitavelmente primitivo na sua anterioridade, a qualquer “nor-malização” decorrente dos circuitos de exposição universal com que passámos a viver (e de que o YouTube é a expressão linear, sedutora e pueril).
A imagem de Mishima na varanda do quartel de Tóquio é, em tudo e por tudo, contrária à ideia de uma pose assumida para conquistar espaço mediático. O suicídio de Mishima, mesmo na sua dimensão mais selvagem de desafio público (e ao público), não visa ocupar qualquer espaço de visibilidade que, por assim dizer, o justifique ou redima. Há mesmo na sua performance (e a palavra não tem nada de deslocado ou escandaloso, uma vez que remete para a avassaladora teatralidade do acto) o desejo insensato de encontrar uma verdade primordial que está nas palavras e que, por isso mesmo, não se pode mostrar, mas tão-só dizer. Ou melhor: escrever.
O suicídio de Mishima afirma-se, assim, inseparável do universo específico da palavra escrita, nasce da literatura e para ela tende. Mishima não morre apenas na indiferença pelas imagens. Num certo sentido, morre contra elas e contra a sua potencial obscenidade.
Em 1985, Paul Schrader compreendeu admira-velmente esta lógica ancestral ao encenar o escritor suicida no filme Mishima (título original: Mishima: A Life in Four Chapters). Trata-se de um exercício eminentemente interior e também, sobretudo, de interiores. É uma interioridade que começa, por assim dizer, no assumido intimismo do autor de Confissões de uma Máscara. De forma porventura sugestiva, podemos mesmo resumir a démarche criativa de Schrader como a construção de um discurso confessional que se vai deslocando da materialidade das máscaras para a luminosidade insustentável da verdade [trailer].
Aliás, a mais cândida memória cinéfila manda que recordemos que, antes de Mishima, Schrader, estudioso de Ozu, Dreyer e Bresson (aos três dedicou um estudo intitulado Transcendental Style in Film), tinha o seu nome ligado a pelo menos dois filmes que lidam com a mesma crueza de uma verdade que, para além de todas as suas formas de vulnerabilidade, postula uma hipótese de amarga redenção. Eram eles Taxi Driver (1976), escrito por Schrader e realizado por Martin Scorsese, e American Gigolo (1980), escrito e dirigido por Schrader.
Yukio Mishima pôs fim à sua existência a 25 de Novembro de 1970, por “seppuku”, forma ritualizada de suicídio enraizada, na tradição japonesa, no código de honra dos samurais. Fê-lo no quartel de Tóquio das Forças de Auto-Defesa do Japão. Pouco antes do seu gesto final, numa varanda desse mesmo quartel, Mishima [foto] dirigiu-se a uma multidão de soldados, tentando, sem êxito, incitá-los à revolta e à reposição dos valores imperiais anteriores à guerra.
Além de algumas fotografias, existe um breve registo filmado dessa prelecção de Mishima. Podemos mesmo encontrar tal registo na Internet, no YouTube [video: japonês, sem legendas], sendo inevitável pensar na perversa degradação ontológica com que o nosso admirável mundo novo banalizou as suas imagens. De facto, não parece possível apagar a perturbação que rasga a vida (e a morte) de Mishima, e tanto mais quanto ela se espraia por uma obra imensa que passa pelos domínios do romance, ensaio, poesia e teatro. Ao mesmo tempo, quer queiramos, quer não, quando o vemos nessa varanda que se confunde com um derradeiro “altar”, é difícil não sentir que a ideologia do fait divers veio contaminar, porventura de forma irreversível, o radicalismo da sua morte (e também da sua vida).
Há na pulsão suicida de Mishima uma intensidade que não se esgota no desafio, ao mesmo tempo simbólico e institucional, inerente à sua morte. Na verdade, ele terá sido um dos derradeiros heróis de um mundo ainda não convertido ao torpor fascinado das nossas auto-estradas da comunicação. Podemos mesmo arriscar dizer que, para além das suas incontornáveis componentes nacionais, a arte de Mishima nos continua a falar como produto de um desejo anterior, inevitavelmente primitivo na sua anterioridade, a qualquer “nor-malização” decorrente dos circuitos de exposição universal com que passámos a viver (e de que o YouTube é a expressão linear, sedutora e pueril).
A imagem de Mishima na varanda do quartel de Tóquio é, em tudo e por tudo, contrária à ideia de uma pose assumida para conquistar espaço mediático. O suicídio de Mishima, mesmo na sua dimensão mais selvagem de desafio público (e ao público), não visa ocupar qualquer espaço de visibilidade que, por assim dizer, o justifique ou redima. Há mesmo na sua performance (e a palavra não tem nada de deslocado ou escandaloso, uma vez que remete para a avassaladora teatralidade do acto) o desejo insensato de encontrar uma verdade primordial que está nas palavras e que, por isso mesmo, não se pode mostrar, mas tão-só dizer. Ou melhor: escrever.
O suicídio de Mishima afirma-se, assim, inseparável do universo específico da palavra escrita, nasce da literatura e para ela tende. Mishima não morre apenas na indiferença pelas imagens. Num certo sentido, morre contra elas e contra a sua potencial obscenidade.
Em 1985, Paul Schrader compreendeu admira-velmente esta lógica ancestral ao encenar o escritor suicida no filme Mishima (título original: Mishima: A Life in Four Chapters). Trata-se de um exercício eminentemente interior e também, sobretudo, de interiores. É uma interioridade que começa, por assim dizer, no assumido intimismo do autor de Confissões de uma Máscara. De forma porventura sugestiva, podemos mesmo resumir a démarche criativa de Schrader como a construção de um discurso confessional que se vai deslocando da materialidade das máscaras para a luminosidade insustentável da verdade [trailer].
Aliás, a mais cândida memória cinéfila manda que recordemos que, antes de Mishima, Schrader, estudioso de Ozu, Dreyer e Bresson (aos três dedicou um estudo intitulado Transcendental Style in Film), tinha o seu nome ligado a pelo menos dois filmes que lidam com a mesma crueza de uma verdade que, para além de todas as suas formas de vulnerabilidade, postula uma hipótese de amarga redenção. Eram eles Taxi Driver (1976), escrito por Schrader e realizado por Martin Scorsese, e American Gigolo (1980), escrito e dirigido por Schrader.
Para além de todas as diferenças culturais (mas também através delas), são filmes que, com Mishima, partilham a vertigem de um desejo utópico confrontado com a sua fronteira última. No caso de Taxi Driver, tal desejo confunde-se com a nostalgia de uma noite pura e virginal, enquanto American Gigolo lida com o abismo negro inerente à partilha do prazer sexual. Para Schrader, Mishima, ou melhor, o seu Mishima é o arauto de uma vontade confessional que, obviamente não por acaso, passa pela identidade sexual e, mais especificamente, pela “máscara” com que o protagonista recobre a sua homossexualidade.
[continua]