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Além de algumas fotografias, existe um breve registo filmado dessa prelecção de Mishima. Podemos mesmo encontrar tal registo na Internet, no YouTube [video: japonês, sem legendas], sendo inevitável pensar na perversa degradação ontológica com que o nosso admirável mundo novo banalizou as suas imagens. De facto, não parece possível apagar a perturbação que rasga a vida (e a morte) de Mishima, e tanto mais quanto ela se espraia por uma obra imensa que passa pelos domínios do romance, ensaio, poesia e teatro. Ao mesmo tempo, quer queiramos, quer não, quando o vemos nessa varanda que se confunde com um derradeiro “altar”, é difícil não sentir que a ideologia do fait divers veio contaminar, porventura de forma irreversível, o radicalismo da sua morte (e também da sua vida).
Há na pulsão suicida de Mishima uma intensidade que não se esgota no desafio, ao mesmo tempo simbólico e institucional, inerente à sua morte. Na verdade, ele terá sido um dos derradeiros heróis de um mundo ainda não convertido ao torpor fascinado das nossas auto-estradas da comunicação. Podemos mesmo arriscar dizer que, para além das suas incontornáveis componentes nacionais, a arte de Mishima nos continua a falar como produto de um desejo anterior, inevitavelmente primitivo na sua anterioridade, a qualquer “nor-malização” decorrente dos circuitos de exposição universal com que passámos a viver (e de que o YouTube é a expressão linear, sedutora e pueril).
A imagem de Mishima na varanda do quartel de Tóquio é, em tudo e por tudo, contrária à ideia de uma pose assumida para conquistar espaço mediático. O suicídio de Mishima, mesmo na sua dimensão mais selvagem de desafio público (e ao público), não visa ocupar qualquer espaço de visibilidade que, por assim dizer, o justifique ou redima. Há mesmo na sua performance (e a palavra não tem nada de deslocado ou escandaloso, uma vez que remete para a avassaladora teatralidade do acto) o desejo insensato de encontrar uma verdade primordial que está nas palavras e que, por isso mesmo, não se pode mostrar, mas tão-só dizer. Ou melhor: escrever.
O suicídio de Mishima afirma-se, assim, inseparável do universo específico da palavra escrita, nasce da literatura e para ela tende. Mishima não morre apenas na indiferença pelas imagens. Num certo sentido, morre contra elas e contra a sua potencial obscenidade.
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Aliás, a mais cândida memória cinéfila manda que recordemos que, antes de Mishima, Schrader, estudioso de Ozu, Dreyer e Bresson (aos três dedicou um estudo intitulado Transcendental Style in Film), tinha o seu nome ligado a pelo menos dois filmes que lidam com a mesma crueza de uma verdade que, para além de todas as suas formas de vulnerabilidade, postula uma hipótese de amarga redenção. Eram eles Taxi Driver (1976), escrito por Schrader e realizado por Martin Scorsese, e American Gigolo (1980), escrito e dirigido por Schrader.
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[continua]