sábado, dezembro 27, 2008

A miragem de "Austrália"

Este magnífico cartaz do filme Austrália acaba por ser um esclarecedor sintoma do que está a acontecer em algum cinema melodramático e "nostálgico": a perda das suas matrizes fundadoras, apenas "compensada" pela permanência das respectivas imagens de marca — o texto que se segue foi publicado no Diário de Notícias (25 de Dezembro), com o título 'A miragem clássica'.

São muitos os filmes que nos permitem perceber as contradições internas da história da Austrália. Podemos evocar a obra-prima de Alfred Hitchcock, Sob o Signo de Capricórnio (1949), melodrama com Ingrid Bergman em que a sociedade australiana do século XIX emerge como fantasma moral da Grã-Bretanha. Mais próximo, podemos citar o caso de A Vedação (2002), de Philip Noyce, sobre a política que, na década de 1930, levou à separação compulsiva de muitas crianças aborígenes das respectivas famílias.

>>> Um dos espantosos planos-sequência de Sob o Signo de Capricórnio, com Ingrid Bergman a recordar os acontecimentos tráumaticos que a conduziram à Austrália.



Baz Luhrmann terá querido fazer uma síntese, sem dúvida conceptualmente interessante, porventura impossível em termos de produção. O seu Austrália pretende ser uma fusão espectacular de todas essas memórias traumáticas e, certamente não por acaso, apresenta-se mesmo narrado a partir do ponto de vista de Nullah (Brandon Walters), uma criança “marginal”, nascida de uma mãe aborígene e um pai branco. Nullah introduz no filme uma mágoa enraizada numa idealização do próprio país que tem sempre dificuldade em combinar-se com a love story construída em torno das personagens de Nicole Kidman e Hugh Jackman.
Mesmo não esquecendo dois ou três momentos fulgurantes, Austrália apresenta-se como um objecto ferido pela ambição de querer relançar uma matriz cinematográfica enraizada na herança de clássicos como E Tudo o Vento Levou (1939). Luhrmann acaba por não ter um background de produção que lhe permita sustentar uma estética coerente: na primeira parte, por exemplo, a imponência física do deserto é um fundamental elemento dramático até que, a pouco e pouco, a “falsidade” dos cenários digitais vai tomando conta do filme. Reveja-se Lawrence da Arábia (1962) e imagine-se o que ficou por fazer.

>>> Da lista dos '100 Maiores Filmes de Sempre', pelo American Film Institute: apresentação de Lawrence da Arábia.