terça-feira, dezembro 16, 2008

Londres: a carne segundo Bacon

Francis Bacon
Figura em movimento
1985

Não se pede licença para entrar na pintura de Francis Bacon (1909-1992). Ou melhor: as portas/janelas estão sempre abertas e entramos, não exactamente porque sejamos convocados, antes porque não é possível virar os olhos a tão grave e gravosa emanação do factor humano. No limite, sabemos que é na vibração inclassificável da carne que toda a sua pintura acontece. Não esperamos nenhuma reparação moral, nenhum apaziguamento de nenhum desejo — é tudo selvagem, aliás, íntimo, como um grito que decidimos conter para redobrar o medo que nele se transporta.
Assim é a monumental exposição de Bacon na Tate Britain (até 4 de Janeiro). Desde as mais remotas variações sobre o retrato do Papa Inocêncio X pintado por Velazquez (c. 1650), até aos trípticos que tomam como matriz a Crucificação, passando pelos muitos retratos de George Dyer e pelas muitas emanações animalescas, redescobrimos Bacon como um retratista do desnudamento do humano. E só por inapelável inocência ou militante distração poderemos pensar que o nu se revela, aqui, na exposição brutal da pele. Nada disso: a pele, essa barreira fascinante (mas sempre violável) da pintura de Lucian Freud, não existe como "superfície" no universo figurativo da Bacon — tudo é interior de outro interior, as vísceras são também a cobertura de uma realidade cujos corpos estão necessariamente deformados, quer dizer, à procura de uma forma que os faça existir para além da vulnerabilidade e da irrisão do acto de viver.
É bem provável que artistas contemporâneos como Bret Easton Ellis ou David Cronenberg não fossem o que são sem Bacon. Seja como for, a sua pintura não dá tréguas a nenhuma idealização das relações humanas. Paradoxalmente, para além do sangue e da dor, há nela um silêncio acolhedor. Transitório, mas acolhedor.

>>> Em 1998, John Maybury dirigiu Love Is the Devil (nesse ano apresentado em Cannes, na secção 'Un Certain Regard'), espantoso retrato de um Francis Bacon assombrado pela crueza da sua própria arte. Derek Jacobi interpretava Bacon, surgindo Daniel Craig no papel de George Dyer — eis o trailer.