domingo, novembro 16, 2008

"Cegueira": Meirelles vs. Saramago

O site do filme Ensaio sobre a Cegueira (do qual é extraída esta imagem) apresenta um visual muito interessante que vale a pena descobrir. Entretanto, a "recriação" do romance de José Saramago por Fernando Meirelles, ainda que aplicada e exigente, fica aquém das expectativas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 de Novembro) com o título 'Com filmar um grande livro?'.

Na sua maneira muito sarcástica de caracterizar as relações entre literatura e cinema, Alfred Hitchcock disse um dia que são os “maus” livros que dão os “bons” filmes... Enfim, não seria difícil encontrar exemplos para contrariar o radicalismo da sua asserção. Mas a questão não é essa. De facto, Hitchcock apontava para o equívoco que muitas vezes se estabelece entre a riqueza particular de um livro e as qualidades da respectiva adaptação: as estruturas especificamente literárias não encontram um equivalente automático na linguagem fílmica. Dito de modo mais esquemático: um grande livro pode ser o ponto de partida para um aparatoso desastre cinematográfico.
Ensaio sobre a Cegueira, adaptado do prodigioso romance de José Saramago, não será exactamente um desastre. Em todo o caso, o trabalho do argumentista Don McKellar e do realizador Fernando Meirelles nunca encontra soluções consistentes para lidar com a riqueza argumentativa e emocional do texto de Saramago. Razões para isso? Uma, central, a meu ver: o filme vai-se “adaptando” a um cliché do cinema de ficção científica (a comunidade autónoma, abandonada, permanentemente à beira da autodestruição), pelo caminho alienando todo o labor de peculiar introspecção moral para que o romance nos convoca.
Por um lado, somos confrontados com um sugestivo tratamento visual dos espaços e das cores a que, como é óbvio, não é estranha a competência do director de fotografia César Charlone (já nomeado para um Óscar pelo seu trabalho em Cidade de Deus, também de Meirelles); por outro lado, deparamos com um elenco de gente de muitos e variados talentos, com inevitável destaque para a sempre subtil Julianne Moore. Ainda assim, o filme deixa a sensação de ser uma experiência redutora face ao livro, uma espécie de “digest” ilustrativo a que falta o impacto da parábola da cegueira colectiva inventada pela escrita de Saramago. Para quem nunca leu o livro, essa parábola fica reduzida a um incidente sem densidade existencial.