Faz parte da triunfante cultura da estupidez proclamar que a crítica serve para destruir o cinema. Em Portugal, pelo menos, esse é um discurso velho e caquético que sempre teve adeptos — e muito convictos, há que reconhecer. De facto, "a" crítica (singular) não existe, pela simples razão de que, com talento ou sem ele, os críticos (plural) defendem pontos de vista diversos, contrastados, na maior parte das vezes inconciliáveis. Existe, isso sim, uma normalização televisiva — através das telenovelas — que, todos os dias, há décadas (desde 1978, em rigor), vai formatando tudo e todos, desde os olhares à própria economia do audiovisual.
Felizmente, algum cinema, naquilo que tem de mais específico, tem sabido resistir a essa escola de banalidade que são as telenovelas e seus derivados. Entre os filmes que já se afirmaram nessa resistência, surge, agora, Entre os Dedos, de Tiago Guedes e Frederico Serra, drama pungente de um quotidiano que se expõe em imagens cruas e precisas como a que aqui podemos ver [Isabel Abreu].
É um drama ferido por uma urgência feita de carne, sangue e emoções: primeiro, porque se trata de olhar para as nossas vidas recusando, ponto por ponto, essas chagas contemporâneas que são a ironia que esmaga qualquer seriedade, a exaltação histérica do pitoresco e a moralização determinista das relações sociais; depois, porque um povo cuja complexidade existencial é sistematicamente ocultada pelo insidioso labor das ficções dominantes é um povo preso das formas que alguns lhe impõem.
Sim, é preciso voltar a falar das formas, apesar (ou melhor: por causa) dos lugares-comuns que tentam abafar a discussão política das nossas formas de ficção. E será também útil que percamos o medo de usar a palavra povo, mesmo não esquecendo as aplicações mais soezes que dela se fizeram. Entre os Dedos é um filme para nos ajudar nesse imenso trabalho.