Cinema português versus ditadura da telenovela: em vésperas de duas estreias portuguesas, a equação repõe-se — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 de Outubro), com o título 'Para onde vai a ficção nacional?'.
Estão a chegar às salas dois filmes portugueses que apostam num realismo muito cru: Mal Nascida, de João Canijo, tragédia de um mundo rural devorado pela sua incestuosa violência (estreia dia 9), e Entre os Dedos, de Tiago Guedes e Frederico Serra, crónica de solidões em cenário de perturbante desagregação dos laços sociais (estreia dia 23).
Para além das suas diferenças, há neles uma opção comum que, mais do que nunca, importa sublinhar: trata-se de resistir à formatação televisiva das narrativas e das mentes, mostrando que o país pode ser pensado muito para além das patéticas “intrigas” de telenovelas construídas sobre esse grande desiderato filosófico que consiste em saber “quem vai para a cama com quem”... E se o leitor considera que a minha prosa é deslocada, desculpe a franqueza mas, na sua boa fé, anda muito distraído.
Na verdade, a telenovela tornou-se a linguagem dominante da televisão generalista em Portugal. Não só ameaça sugar, estetica e financeiramente, o próprio cinema, como se assumiu como verdadeira instituição ideológica. Há dias, tivemos um eloquente exemplo dessa postura quando um canal (TVI) promoveu uma votação para escolher as suas (!) melhores telenovelas de sempre. Para além do peculiar narcisismo mediático que serve de subtexto a semelhante iniciativa, a sua realização desembocou num acontecimento a que foi dada a designação de Gala da Ficção Nacional.
Reconheço a minha ingenuidade. Quando li a expressão “ficção nacional” aplicada para designar um património (?) de telenovelas, supus que a generalidade do nosso meio artístico, intelectual e político iria sair do seu torpor e, finalmente, puxar dos galões para remeter a aplicação de tal terminologia à condição de irrisória provocação estética. Acreditei que, quanto mais não fosse em nome dos mínimos olímpicos da indignação cultural, se multiplicariam as vozes para lembrar (apenas lembrar...) que no país de Luís de Camões, Vieira da Silva, Sofia de Mello Breyner Andresen, Manoel de Oliveira e José Saramago, promover telenovelas como “a” ficção nacional, além de relevar de um profundíssimo mau gosto, representa um abuso contra a nossa história como cultura e, já agora, também como nação.
Mas não. Apesar da energia de algumas vozes individuais, o país especializou-se na distracção. E de tal modo a cultiva que tem assistido impávido ao avanço de uma degradada representação “telenovelesca” da juventude. Pasmo, confesso, com o facto de as telenovelas andarem a encenar os jovens como tontinhos sexuais que só pensam em telemóveis e gel no cabelo, e tudo isso acontecer perante o prolongadíssimo silêncio de instituições políticas (seria interessante ouvir os partidos comentar a situação) e profissionais (como é possível ser professor e não ter algum tipo de reacção a este estado de coisas?).
Aos dois filmes portugueses citados no início, não se lhes pode pedir que transformem, por si só, esta calamitosa situação. Mas é inevitável ver neles os sinais de uma resistência cultural que, a meu ver, deve ser reconhecida e partilhada. Não é fácil, porque a mesma ideologia que sustenta as telenovelas promove, há décadas, um menosprezo total pelo cinema português.