Durante uma semana, as lojas Vobis (computadores e multimedia) desenvolveram uma curiosa campanha promocional com uma figura pública: Fernando Alvim. O protagonista apresentava-se online, mantendo um diário sobre uma experiência peculiar: "viver 7 dias sem telemóvel, internet, computador, agenda electrónica, GPS e sem leitor de mp3". A singularidade do evento mediático justifica algumas reflexões.
Não se trata, entenda-se, de convocar esse infantilismo semiológico que exige a um discurso publicitário uma quase policial "prova de verdade". Ou seja: interessa pouco (em boa verdade, é irrelevante) se Fernando Alvim viveu ou não sete dias nas condições descritas — a publicidade é uma forma específica de representação e é enquanto trabalho de mise en scène que se sugere a sua análise.
Do mesmo modo, não se queira ler aqui — neste blog em que a abordagem das mensagens publicitárias é tão empenhada quanto frequente — o lançamento de qualquer anátema sobre quem faz publicidade assumindo a sua própria identidade. Podemos, evidentemente, discutir os resultados, seja no plano da comunicação social, seja enquanto trabalho formal, mas essa é uma actividade corrente no mundo contemporâneo — que envolve gente tão diversa como Mariza, Penélope Cruz, Tiger Woods, José Mourinho ou Madonna — e a sua legitimidade não está minimamente em causa. Além do mais, esquecer isso seria recalcar mais de um século de história social e simbólica, pós-Revolução Industrial, e em particular ignorar as muitas alianças entre publicidade e arte pop.
Dito isto, vale a pena perguntar como é que a campanha apresenta/representa Fernando Alvim literalmente sem rede — e sem todos os instrumentos que podem sustentar um sistema de organização/informação/comunicação digital. A resposta é: o protagonista surge encenado como um ser irremediavelmente carente e, mais do que isso, sem qualquer forma de pensamento sobre a sua carência. Veja-se este video, referente ao dia 6 (1 de Setembro), e repare-se nos signos do seu desamparo.
Não sejamos ingénuos. Nem ingenuamente moralistas. Claro que uma campanha exige uma mensagem e, neste caso, a mensagem é qualquer coisa como: "Não sofra destas carências, venha à nossa loja" — o slogan, aliás, é modelar: Liga-te ao mundo.
Espantoso é o facto de nunca, em nenhum momento, se sugerirem outras formas de ligação. Insolitamente, num espaço publicitário tão saturado de pueris sugestões sexuais, desta vez estão ausentes as conotações eróticas (mesmo o objecto "cama" apresenta-se curiosamente neutro). Do mesmo modo, também não se apresentam alternativas sociais e/ou familiares: a personagem não tem horizontes, sendo mesmo descrita como um pária, um sem-abrigo digital. Muito menos surge qualquer hipótese mais clássica de ocupar o tempo — por exemplo, ler um livro. Ou, quem sabe, fazer fotografias com película (não era um dos interditos da experiência) para depois as colocar no telemóvel, no computador, na net... Nada: sem digital não há vida.
A única coisa "natural" é o facto de o protagonista andar a ser seguido por uma câmara. Quem filma? Como filma? São questões ausentes. A única coisa que funciona é uma espécie de dispositivo do mais básico naturalismo televisivo, algures entre a lógica voyeurista dos apanhados e o fluxo inconsequente de um reality show. Tudo isso deixa uma mensagem insólita: por vezes (desta vez, pelo menos), a ideologia que sustenta o mercado dos circuitos virtuais vive desligada de tudo o que não seja os seus próprios gadgets.
Não sejamos ingénuos. Nem ingenuamente moralistas. Claro que uma campanha exige uma mensagem e, neste caso, a mensagem é qualquer coisa como: "Não sofra destas carências, venha à nossa loja" — o slogan, aliás, é modelar: Liga-te ao mundo.
Espantoso é o facto de nunca, em nenhum momento, se sugerirem outras formas de ligação. Insolitamente, num espaço publicitário tão saturado de pueris sugestões sexuais, desta vez estão ausentes as conotações eróticas (mesmo o objecto "cama" apresenta-se curiosamente neutro). Do mesmo modo, também não se apresentam alternativas sociais e/ou familiares: a personagem não tem horizontes, sendo mesmo descrita como um pária, um sem-abrigo digital. Muito menos surge qualquer hipótese mais clássica de ocupar o tempo — por exemplo, ler um livro. Ou, quem sabe, fazer fotografias com película (não era um dos interditos da experiência) para depois as colocar no telemóvel, no computador, na net... Nada: sem digital não há vida.
A única coisa "natural" é o facto de o protagonista andar a ser seguido por uma câmara. Quem filma? Como filma? São questões ausentes. A única coisa que funciona é uma espécie de dispositivo do mais básico naturalismo televisivo, algures entre a lógica voyeurista dos apanhados e o fluxo inconsequente de um reality show. Tudo isso deixa uma mensagem insólita: por vezes (desta vez, pelo menos), a ideologia que sustenta o mercado dos circuitos virtuais vive desligada de tudo o que não seja os seus próprios gadgets.
A certa altura, Fernando Alvim tem saudades do som dos Led Zeppelin — aí, por brevíssimos momentos, acreditamos que a pulsação das coisas vivas poderá não ser estranha a tudo o que nos contam. De resto, somos envolvidos num discurso que proclama a exuberância da vida, ao mesmo tempo que se mostra trespassado por uma mortal tristeza.